Crônicas da Era do Rock com Raul Seixas e Marcelo Nova
CRÔNICAS DA ERA DO ROCK – Rodrigo Leste – quinto episódio
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IMPOSTOR – com Raul Seixas e Marcelo Nova
Turnê em garimpos – Perrengue em Serra Pelada
Duas feras da MPB e do rock estão sentadas, no meio da tarde paulistana, num boteco roscofe na avenida Brigadeiro Luiz Antônio. Pra não serem reconhecidas por fãs e curiosos, sentam-se numa mesa nos fundos do bar, que está quase vazio. Ambas protegem os rostos com óculos escuros, boné e chapéu. O lugar recende a gordura velha, as paredes são encardidas, assim como o velho ladrilho vermelho do chão.
— Marceleza, segura a onda que hoje vou contar a história toda.
— Tranquilo, cumpadi, sou todo ouvidos, rs. Peraí! Garçon! (o garçon é um idoso que manca da perna direita e que não reconhece, ou finge não reconhecer, a dupla de artistas) Traz mais dois conhaques! (fazendo um V com os dedos) Conta aí, Rauzito.
— Quase não consigo terminar a música. Estava me contorcendo no palco, mas não era mise-en-scène, era de dor mesmo. Uma cólica do caralho! — Será que é assim a cólica menstrual de mulher?
Marcelo faz uma careta.
— Precisava ir ao banheiro de qualquer jeito, mas ao mesmo tempo pensava se o Gordo ia sacar que era pra continuar, improvisar qualquer coisa sem entrar em pane como daquela vez em Campina Grande. Lá, tinha uma mulher que eu não aguentava nem olhar, morria de tesão. Já tinha dado uns amassos nela antes de ir pro palco. O Magalhães, que era meu empresário na época, tava enchendo o saco, repetindo a ladainha:
— O atraso já passou da conta! Nordestino é sangue quente, depois arrumam um quebra-quebra, aí é que eu quero ver.
— Eu doido pra me atracar com a vagaba mas o Magalhães encheu tanto o saco que resolvi começar logo a porra do show. Ela, a sacana, uma argentina, ficou ali na coxia fazendo beicinho, me provocando. Chegou uma hora que eu disse: foda-se! Fiz um sinal pro Gordo que ia dar uma saída. O babaca se embasbacou todo, ficou igual uma siriema numa boutique, perdeu a rosca, o rebolado, e se não fosse o Demóstenes improvisar um solo no piano, o negócio tinha degringolado pra valer.
— Aquele Gordo tem cara de mané mesmo, lerdo pra caraí. Mais um conhaque?
— Um uísque. Prefiro agora um uísque, pode pedir (Marcelo olha em volta, procurando pelo garçon). O Gordo, além de lerdo, é péssimo músico. Só aguentei porque ele era o queridinho do Magalhães. Mas, escuta aí: não tive jeito de fazer nada com a mulher. Não consegui me concentrar e só fui recuperar a moral com a tal da argentina quando dei um trato legal nela mais tarde, no hotel. Eu e a muchacha entornamos uma garrafa de uísque e aí rolou um balacobaco dos capetas!
— Esse é o Pantera que conheço! Mas, continua aí.
— No show, na porra do garimpo, uma dor de barriga tava acabando comigo. Deve ter sido um xinxim de bode que resolvi encarar. Tudo por causa das ideias de jerico do Magalhães. O demente inventou de fazer uma turnê pelos maiores garimpos do país, passando em Serra Pelada e o caralho. Lá, aconteceu uma das cenas mais nojentas da minha carreira: eu tava pondo os bofes pra fora, uma diarreia dos diabos. Os imundos banheiros do lugar viviam ocupados. Não deu pra segurar. Corri pra trás de umas mamoneiras levando um rolo de papel higiênico. Só que uns malucos duns garimpeiros me descobriram atrás das moitas. Mesmo me estrebuchando todo tive que autografar os posters, discos e outros badulaques que eles me apresentavam. Olha só a cena: eu ali, amarrando o gato e autografando, um mal estar dos infernos!
— Caraí! Essa não! Cagar e autografar nunca imaginei essa combinação!
O garçon apareceu e Marcelo pede mais um conhaque e um uísque.
— Pois é, Marceleza, o bagulho é doido! Eu olhei de novo pro Gordo, fiz sinal pra ele se aproximar, ele entendeu que era pra acabar a música e deu os acordes finais. Acenei pra banda: vamos tocar logo outra porque a vida é como um disco, sempre tem que rodar; uma música após a outra e pronto. E vamos tocar logo aquela que eles querem mais, a que toca mais no rádio. Apesar da dor de barriga, vou cantar como um louco, como se fosse a última vez que eu cantasse essa música na vida.
— Dor de barriga no palco mata até Lampião!
Marcelo estala a língua e dá uma cuspida no chão. Raul continua:
— Quando o Demóstenes pulou fora da banda, o Magalhães disse que dava pra gente se virar com os playbacks. Munheca de samambaia! Pensei: “Playback nunca funcionou, é um negócio grotesco você enfiar um troço gravado no meio de uma música que está sendo tocada ao vivo”. Eu olhava pra plateia e sentia que não tava funcionando, tava esquisito sem os backing vocals, sem o teclados do Demóstenes; num sei por que fui concordar com esse troço.
— Detesto playback, veio, detesto essas porras sampleadas, essa enganação toda. Gosto do som na lata…
Marcelo é interrompido por um mendigo que caminha dentro do bar embrulhado num cobertor roxo. Ele avança até a mesa dos artistas e começa a fazer uma mímica desengonçada que sugeria algo relacionado com o diabo. Marcelo e Raul começam a rir simultaneamente. O garçon chega trazendo a bebida numa bandeja e uma porção grátis de amendoim. Depois de colocar a bandeja na mesa, pega uma vassoura e vai escorraçando pra fora do bar o homem do cobertor roxo. Raul chama o garçon, passa uma nota de 50 reais a ele e ordena que entregue ao mendigo.
Marcelo diz:
— Essa é a desvairada da Paulicéia! É cada figura que me aparece. Mas continua aí, mano, pra não perder o fio da meada.
— Onde é que eu tava mesmo? Deu um branco… (toma um gole do uísque)
— Você tava falando da merda da turnê que o Magalhães arrumou nos garimpos, em Serra Pelada. Vou aproveitar pra falar que nunca fui com a cara do Magalhães. Puta mercenário, sanguessuga.
— Vampiro da Transilvânia! Na época eu tava na pioral, por isso aguentei o canalha. Mas ouve aí. A plateia ficou agitada quando ouviu os primeiros acordes da música que eles mais gostam. Senti que era o momento de fazer o gran finale, tocar o som e acabar logo com a parada. Depois, era voltar pro bis e pronto: tomar a outra metade da garrafa de uísque e apagar. Só que o Gordo vacilou na introdução, a banda se perdeu, o som saiu esquisito, não parecia nada com a música que devíamos tocar.
— Caraí!
— Impostor! A palavra gritada no meio da plateia escalou a massa sonora disforme e ridícula que produzíamos no palco. Impostor! Nitidamente distingui a ofensa. Mais vozes se juntaram à primeira e o tal do impostor passou a ser gritado em coro. Os músicos assustados, pararam de tocar de repente. Ficou aquele clima pesado no ar. Falei no microfone: o que quê há, moçada? O show não tá bom? Alguém gritou lá do fundo:
— Se você for o Raul, eu sou a Betty Faria!
— Gargalhadas explodiram respondendo à provocação. Olhei pra trás e vi que o Robertinho, o Braga e o Gordo estavam se borrando todos; murchos, sem ter onde se enfiar no palco, uns medrosos, covardes. Resolvi enfrentar a situação: então vocês estão achando que eu não sou o Raul?! Como ninguém respondesse, emendei: pode ser que não esteja no melhor da minha forma, mas garanto que sou eu mesmo!
— Só se for o Raul, depois da gripe!
— Respondeu um engraçadinho. Várias piadinhas do mesmo nível surgiram de muitos lugares. Percebi que tava perdendo o controle. Apareceu outro grito:
— Vigarista!
— Parti pro contra-ataque: vocês querem o Raul? Perguntei: querem que eu toque …? Que estava sendo guardada pro fim. A merda desandou de vez. Tive medo de ser linchado. Saquei que não tinha mais nada a fazer. O impulso de destruição era maior do que qualquer argumento.
— Rapaz, que arrego, hein?! Não imaginava que o troço tinha chegado nisso, toda a merda da Babilônia escorrendo ali. Caraí!
— A sensação era de que eu ia pro pau mesmo. Os garimpeiros iam me estraçalhar. Toda a raiva da vida de merda que levavam ali se voltava contra mim. Eu era o cordeiro do sacrifício, Jesus sendo levado por Pilatos pra junto de Barrabás, exposto como um criminoso diante daquele gentio sedento de sangue.
— Eita!
— Foi aí, naquele momento, que pintou na minha cabeça:
Parte de um plano secreto
Amigo fiel de Jesus
Fui escolhido por ele
Para pregá-lo na cruz
— Porreta. Gosto muito dessa música. Mas quero saber o que rolou, cumé que ficou a parada lá com os garimpeiros.
— Um sargento, cabo, sei lá, subiu no palco e já tacou dois pipocos pra cima. A ideia dele era me autuar em flagrante como estelionatário.
— Pilantra!
— Foi a primeira palavra que usou pra se dirigir a mim. Os garimpeiros não gostaram da intervenção do milico, tavam naquela de fazer justiça com as próprias mãos. Mas o sujeito tornou a atirar pra cima, depois deu um assovio alto, desses de chamar cachorro e logo uns cinco soldados estavam em cima do palco. Me algemaram debaixo das vaias da galera enfurecida. Fui levado pro barraco que servia de delegacia. Depois fui vítima de um interrogatório ridículo, uma pressão escrota. O que aliviou a barra foi quando o Magalhães pegou a pasta e mostrou os recortes de jornal, pra provar que eu, era eu mesmo.
— Tem que escrever um livro contando essa e outras, Raul. Esses babacas desses fãs otários têm que sacar que vida de artista não é só caviar, champanhe e louras geladas, não. Fiquei todo arrepiado com essa porra garimpeira. Ô garça! Faz favor, traz mais um conhaque pra mim e um uísque pro meu parça aqui.
Revisão: Hilário Rodrigues
Consultoria Musical: Marcos Kacowicz
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