NEY MATOGROSSO – HOMEM COM H
Crônica da Era do Rock, por Rodrigo Leste
Enorme o desafio que o ator Jesuíta Barbosa se dispôs a encarar: interpretar alguém que está vivo, que é uma figura icônica e midiática e que tem sua imagem, ao longo dos anos, sendo vista e revista por milhões de pessoas nestas terras brasilis (e pelo mundo afora). E Jesuíta deu um show de bola. Interpretou magistralmente Ney Matogrosso, trazendo para a tela as várias nuances da complexa personalidade do cantor que pode ser considerado o maior representante da luta contra a discriminação sexual no país.
O Ney mostrado por Jesuíta traz as contradições inerentes a qualquer ser humano: é homem com H na hora da barra pesada, mas deixa sua vertente feminina jorrar livremente, é andrógino, transgressor, atrevido, cruzando as fronteiras das conveniências, saltando sem rede do trapézio no circo da utopia onde tudo é permitido.
O Homem com H, do filme de Esmir Filho (também roteirista e diretor), é alguém que construiu sua carreira andando no fio da navalha, desafiando os padrões morais, caretas e machistas, vigentes. A batalha pela conquista de espaço, ou a afirmação de sua personalidade, começa na luta que Ney trava com seu pai, sargento do exército, cabra macho, de rígida envergadura moral que não aceita criar um filho “que vai virar viado”.
Romper com o pai e sair de casa foi inevitável. Antes de cair no mundo, serviu à pátria como cadete nas Forças Aéreas. Depois, experimentou amores, colheu gozo e frustrações, investiu na arte, incluindo o artesanato. Se imaginou ator até que a música bateu em sua porta nas figuras de Gerson Conrad e João Ricardo, os outros dois componentes da banda que veio a se chamar Secos & Molhados. O grupo alcançou um sucesso meteórico. Ney, de subalterno do delírio paterno do pretenso patrão, passa a dar as cartas e esculpe a cara do grupo com ousada maquiagem, usando trajes que expõem sua quase nudez (como as vedetes do teatro de revista), trabalhando o fetiche andrógino que sempre esteve presente nos palcos do rock and roll, seja nos rebolados de Little Richards ou nos quadris de Elvis Presley.
Detalhe: Ney era o autor das fantasias feitas pra mexer com as fantasias de quem o assistia. Ele se inspirou nos mitos da floresta, nos animais, colocando em cena a memória atávica que trazemos da Amazônia.
Mas além de todas as insinuações que promove com seu corpo, Ney ainda traz uma voz que é rara e bela. Tão rara que o regente de um coral, do qual NM fazia parte quando viveu no DF, disse que o cantor “tem o tom de voz dos castrati italianos.”
Os castrati italianos foram famosos cantores de ópera que conseguiam alcançar tons de voz normalmente femininos, como o soprano, o meio-soprano e o contralto. Quando ainda eram meninos, os dotados de grande talento eram castrados com o objetivo de evitar que a sua voz mudasse com a chegada da puberdade. Essa prática se tornou comum na Itália, especialmente nos séculos XVII e XVIII. O mais famoso dos castrati italianos foi Carlo Broschi , conhecido como Farinelli.
Mas Ney não tem nada de castrado, muito pelo contrário. O filme expõe fartamente sua abundante libido. Sexo casual, romântico, selvagem, orgias e surubas rolam à vontade. Homens e mulheres em ação. Na tela, tanto os casos fortuitos quanto relacionamentos que transcendem o sexo, tratando da intimidade entre duas pessoas, carne e espírito. E aí entra em cena Cazuza, com quem NM se envolveu de maneira artística e também na brodagem e no sexo.
Mas quem ganha relevo na história é o Dr. Marco de Maria, médico, que viveu por 13 anos com Ney. Depois do fim do romance, Marco torna-se vítima da Aids que surgia naqueles anos de 1990 matando com furor. Ney prestou ajuda ao ex-companheiro e o acompanhou de maneira solidária e digna até o fim.
Mas vamos voltar no tempo para registrar a participação de Ney Matogrosso na primeira edição do Rock in Rio em 11 de janeiro de 1985. Ele fez o show de abertura do evento sendo uma das atrações do festival na mesma noite de Iron Maiden, Queen e Whitesnake.
O próprio Ney conta o que rolou:
“Era uma noite anunciada como a do metal e, de repente, surge um cara seminu cantando ‘Deus salve a América do Sul…’. Meia dúzia de metaleiros sem educação, que estavam mais próximos ao palco, começaram a atirar ovos (cozidos) na minha direção. E eu chutava de volta em cima deles. Eu que não vou levar desaforo, né?”
Continua:
“Eu tinha necessidade de me expressar com liberdade. Nunca quis o lugar de uma mulher, sempre fui um homem transgressor. Um homem que gosta de ser homem, mas que nem por isso fica restrito. E eu nunca respeitei limites mesmo.”
E mais:
“Sei que várias vezes estive na beira do ridículo, mas nunca caí no ridículo.”
“Tenho orgulho de ser da América Latina, tenho essa consciência de que sou latino-americano. Nós, brasileiros, não temos. A gente só olha para América do Norte.”
Da ficção o filme Homem com H passa para a realidade. Na parte final mostra Ney chegando à fazenda que comprou na região de Saquarema, RJ. Ele se encantou pelo lugar principalmente ao saber que aquelas terras são cortadas por um rio que se chama Mato Grosso. No desfecho, o cantor, ele mesmo, aparece aos 83 anos, sobrevivente da Aids, esbanjando energia no seu bem-sucedido show Vou Botar Meu Bloco na Rua que fez explodir a plateia composta por milhares de pessoas no Rock in Rio em 2024.
https://www.youtube.com/@NeyMatogrosso
https://www.megacurioso.com.br/historia-e-geografia/101327-voce-conhece-a-tragica-historia-dos-castrati-italianos.htm: Crônica Ney MatogrossoSugestão do texto, comentários e pitacos: João Diniz
Pitacos e revisão: Hilário Rodrigues
Colaboração midiática: @rodrigo_chaves_de_freitas
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