JORGE MAUTNER – O profeta do Kaos
Crônica da Era do Rock, por Rodrigo Leste
Era o ano de 1972, eu não devia ter ainda 20 anos quando, numa das minhas idas ao RJ, baixei no Teatro Opinião, em Copacabana, pra assistir ao show de um tal de JORGE MAUTNER. Os cartazes de divulgação traziam a foto de um cara de óculos, com um puta cabelão, tocando violino. Fiquei curioso. Li que o sujeito tinha vivido por muito tempo nos EUA, esteve também em Londres e agora, de volta ao Brasil, dava início a sua carreira musical.
O show, Pra Iluminar a Cidade, não era grandes coisas. Mautner tinha uma voz meio estranha, parecia fazer grande esforço pra cantar. Com seu violino, fazia intervenções que eram pouco comuns na cena da MPB. A banda que o acompanhava era mais ou menos, tinha até um bongô que soava muito alto, chegando a me incomodar. O violão era legal, tocado pelo já competente Nelson Jacobina. O que me agradou e chamou atenção, foram as letras de Jorge, compostas de versos costurados com grande simplicidade, mas trazendo novas e inusitadas conexões: “A noite é escura/e o caminho é tão longo/que me leva à loucura./ Andando e dançando/no fio da navalha/eu sou um faquir/eu sou um palhaço/e um grande canalha.”
Na época, junto com um grupo de amigos como Aloísio Morais, Humberto Guimarães, Nely Rosa, Sérgio Gama, Nem de Tal, Maurício Valadares, Maru Drumond, e vários outros colaboradores, fazia o jornal alternativo O Vapor, que chegou a alcançar muito sucesso em BH. A chamada imprensa underground, ou udigrudi, era uma saída para a censura imposta pela ditadura militar aos grandes da mídia. Havia vários jornais como O Bondinho, Flor do Mal, Navilouca, Lampião, De Fato, Circus e o Pasquim, que foi o mais famoso de todos. O nome de JM aparecia em muitas publicações, então vim a saber da trajetória do escritor e filósofo que podia ser considerado um raro representante da beat generation aqui em terras tupiniquins.
Mautner começou a escrever seu primeiro livro, Deus da Chuva e da Morte, aos 15 anos. A obra foi publicada em 1962 e compõe, com Kaos (1964) e Narciso em Tarde Cinza (1966), a trilogia nomeada como Mitologia do Kaos, que pode ser considerada a base do pensamento mautneriano. Em 1962, JM aderiu ao Partido Comunista Brasileiro, participando de uma célula cultural no Comitê Central. Após o Golpe Militar de 1964, foi preso e liberado sob a condição de se expressar mais “cuidadosamente”.
Em 1966, mudou-se para os Estados Unidos, onde trabalhou na UNESCO e na tradução de livros brasileiros. A partir de 1967, assumiu o cargo de secretário do poeta norte-americano, Robert Lowell, considerado o fundador da poesia confessional. Lá, também conheceu Paul Goodman, sociólogo, poeta e militante pacifista/anarquista da nova esquerda, de quem recebeu grande influência. Em 1970, Mautner se exilou em Londres, onde se aproximou de Caetano Veloso e Gilberto Gil.
Aliás, na volta ao Brasil, Mautner, assim como Caetano e Gil, estava mais para a militância do “desbunde” do que para a do engajamento político. Os tempos de PC pareciam ter passado para o JM que, agora, trafegava pelas vias do homoafeto e revelava uma visão e postura mais holística e mística, principalmente no que diz respeito à umbanda e às afro-religiões: “Do jeito que o mundo anda/ele precisa de fé/ ouve o grito da umbanda e também do candomblé.”
Tornei a assistir a vários shows de Mautner, sempre acompanhado por Nelson Jacobina e banda (com diversas formações). O escritor aperfeiçoou sua vertente musical tendo melhorado tanto no canto quanto nos seus atributos de violinista. O legal nos shows de Jorge é a sua capacidade de quase transformar o evento em performance onde ele improvisa discursos diversos, dando voz a grandes pensadores como Nietzsche. O artista pode tanto resvalar no quase erudito quanto atacar com falas que remetem a personagens dos quadrinhos e desenho animado. Um palhaço falastrão que usa o microfone pra dar uma de profeta e anunciar o Kaos.
Em 2012 um câncer na garganta levou Nelson Jacobina com apenas 58 anos. O talentoso violonista compôs em parceria com JM grandes clássicos da MPB como ‘Lágrimas Negras’ e ‘Maracatu Atômico’. Certamente a perda do amigo e parceiro foi um duro golpe para o profeta do Kaos.
Jorge compôs O Vampiro, que ganhou bela interpretação na voz de Caetano Veloso, nos idos de 1958, trazendo na letra a inquietação e o desassossego dos ventos soprados do Leste Europeu: “Eu uso óculos escuros/pra minhas lágrimas esconder/ e quando vc vem para o meu lado as lágrimas começam a correr/eu sinto aquela coisa no meu peito/eu sinto aquela grande confusão/eu sei que eu sou um vampiro/que nunca vai ter paz no coração.”
Segundo meu amigo e grande agitador cultural, Aroldo Pereira, que há tempos mantém grande vínculo de amizade com Mautner, “Ele (Jorge), que já passou dos 80 anos, luta contra algumas doenças numa boa. Conta com o apoio da família e mora num apê em Copacabana, cercado de hospitais e dos cuidados médicos que forem necessários.” Numa entrevista recente o próprio Mautner afirmou com humor: “Estou forte, fazendo Tai Chi e esperando a morte.”
Salve, Jorge!
Seguem links:
Caetano Veloso e Jorge Mautner – Todo Errado (VIDEOCLIPE)
Jorge Mautner – O Filho do Holocausto (2012) – filme de Pedro Bial: https://www.youtube.com/watch?v=rxAHAvdyQWs
Revisão: Hilário Rodrigues
Colaboração midiática: @rodrigo_chaves_de_freitas
Portal cultural Caleidoscópio: siga @caleidoscopiobh
Para ler mais crônicas, acesse: https://www.caleidoscopio.art.br/category/cultural/cultural-musica/cronicas-musicais/
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