Tadeusz Kantor, parte 4
Teatro Contemporâneo

Tadeusz Kantor, parte 4

Teatro  Contemporâneo | Catálogo de estreia do espetáculo: Que morram os artistas

Catálogo de estreia do espetáculo: Que morram os artistas

Estréia em Nurembergue: 02 junho 1985
Estréia em Milão: 14 junho 1985

Produzido pelo CRT – Centro di Ricerca per il Teatro de Milão, Institut für moderne Kunst Norimberga e Centro Cricot 2 Cracovia.

Apresentação

EU – em pessoa, artífice principal
Tadeusz Kantor
EU – MORIBUNDO, personagem cênico
Laslaw Janicki
O AUTOR do personagem cênico do Moribundo
que descreve em nele a sua própria morte
Wlaclaw Janicki
EU – quando tinha seis anos
Michal Gorczyca
EU – quando tinha seis anos
Michal Gorczyca
SABE-SE QUEM
Maria Kantor
OS SEUS GENERAIS
Giovanni Battista Storti
Marzia Loriga
Eros Doni
Luigi Arpini
Loriano Della Rocca
Jean-Marie Barotte
Wojciech Wegrzyn
Andrzey Kowalczyk
A MÃE
Maria Krasicka
ASCLEPIO, médico, de origem grega
Mira Rychlicka
O PROPRIETÁRIO DO DEPÓSITO DO CEMITÉRIO
Zbignew Bednarczyk
O CARCEREIRO
Krzystof Miklaszwski
OS DOIS POLICIAIS
Wegrzyn Wojciech
Jean-Marie Barotte
O TRAPACEIRO
Lech Stangret
O ENFORCADO
Roman Siwulak
A LAVADEIRA-DE-PRATO
Zbigniew Bednarczyk
O PORCALHÃO
Jan Ksiazek
A PROSTITUTA DO CABARET –
O ANJO DA MORTE
Teresa Welminska
A SANTINHA
Ewa Janicka
O DEFUNTO
Bogdan Renczynski
VEIT STOSS
Andrzej Welminski

Musicas
Nós, a primeira Brigada
Marcha Militar
Oh, meu rosmarinho
Canção popular
Santo Senhor, santo e forte
Velha reza polonesa
Tango de Mala-vita
Alfabeto dos Carcereiros

Que morram os artistas

Instinto, intuição, inconsciente,
automatismo.
Fatores da criação… infernal…
o acaso…
Criar com sabedoria as possibilidades do casual…
Tenho percebido que quando começo a pensar em uma nova criação,
acontece de cair nas minhas mãos coisas diversas, elementos
aparentemente c a s u a i s
provenientes de diferentes âmbitos, inúteis,
privos de conexões lógicas,
sem nenhuma ligação racional,
não se sabe o que fazer com eles.
E mesmo assim percebo,
e é uma percepção frágil, apenas sentida,
mas incessante, persistente, obstinadamente pulsante,
como sinais que provêm ‘de algum lugar’.
Sinto que possuem uma causa comum.
Tenho a sensação indefinida
que sejam guiados por uma mão, por uma força desconhecida.
Que possuem uma origem…
Sempre foi assim.
Mesmo agora.
Talvez repousem em nós certas configurações mentais. Uma certa predisposição.
Como se fossem alguns buracos ou cavidades,
prontos para serem preenchidos.
Ou mesmo que sejam alguns bio-aparatos sensíveis que captam estas e não outras idéias. Imagens…

O título inquietante do espetáculo: Que morram os artistas.
Foi a noite de 05 de março de 1982, em Paris.
Uma conversa vivaz entre amigos.
A diretora de uma famosa galeria estava no ponto de terminar de contar uma estória divertida.
Tratava-se de obter o consenso dos vizinhos para efetuar certas modificações de reestruturação tanto na galeria como nos edifícios antigos.
Os vizinhos, obviamente, protestavam.
Diante do argumento de que a galeria, através das exposições de notáveis artistas, atrairia fama para todo o quarteirão, uma das vizinhas gritou:
Que morram os artistas!!
No mesmo período falei com uma notória mecenas das artes vinda de Nurembergue sobre a possibilidade de criar alguma coisa na sua cidade.
A um certo momento disse: uma coisa que somente poderei fazer em Nurembergue e não em outro lugar.
É a história do prego com que furaram, atravessando, as bochechas de Veit Stoss, segundo a lei que previa tal pena para os crimes de tipo financeiro.
Isto aconteceu quando o Mestre, já velho, preso pela nostalgia de Cracóvia, onde tinha deixado a maior obra de sua vida, O ALTAR DE SANTA MARIA, chegou à porta de sua cidade natal depois de uma longa peregrinação.
“QUE MORRAM OS ATISTAS” exclamei raptado pela coincidência das duas histórias.
Eis o título do meu espetáculo.
Um amigo de Milão me lembrou de uma figura poética construída segundo o princípio da perfídia e da inversão, chamada pelos formalistas “o movimento do cavalo”, que no meio do caminho muda de direção.
Também isto se refere ao inquietante título.
Neste espetáculo não existe uma trama.
Não foi escrita uma peça, da onde o espetáculo deve tirar a sua vida.
O espetáculo nasce sozinho.
A sua matéria viva é o ATOR
e tudo aquilo que entra na sua órbita de AÇÃO:
pensamentos,
idéias,
imagens,
o conteúdo primário do drama,
objetos,
LUGAR / não a cena, mas sim o LUGAR!/.
Esse não se compõe segundo as regras de uma dramaturgia
que através das sucessivas fases da ação se conclui, normalmente, entre a abertura e o fechamento da cortina.
No curso de muitos meses se acumularam tantas ‘questões’,
perguntas, dúvidas, idéias, pensamentos, FORMAS, aquelas novas e aquelas que a muito tempo
esperam o seu momento de revelar-se.
Tudo isso fermentava, regurgitava,
r e i v i n d i c a v a a sua EXPRESSÃO.
Esta falta de uma trama homogênea, fechada no tempo limitado no calendário, que é a condição do DRAMA, me induziu a acrescentar um subtítulo:
REVISTA.
Talvez tenham agito sobre mim os princípios da minha IDÉIA DA REALIDADE DO MAIS BAIXO ESCALÃO que sempre me obrigam a colocar e exprimir as questões ‘Últimas’ na matéria ínfima,
POBRE,
priva de dignidade, de prestígio, indefesa,
freqüentemente até INFAME.

Neste meu vagar com o pensamento em torno de certas questões que, eu sabia,
teriam se tornado o tema do espetáculo.
A ESFERA DA MORTE
que desde muito tempo me atraía.
Agora era ali, completamente identificada com o âmbito da cena.
Não a morte, mas sim a sua esfera, o
LENTO E IMPLACÁVEL MORRER.
O processo progressivo, incessante, anotado e transmitido aos espectadores / posto que a
experiência se desenvolve em teatro / com o método da repetição, até o total tormento.
Isto se aproxima da arte do happening.
O morrer / a morte / em todo o teatro, começando pelos chineses e pelos gregos, foi um ato
violento, dramático, espetacular. Final!
Um momento culminante! Um meio infalível que assegura o sucesso.
Desesperadamente rovinado!
Neste espetáculo, gostaria que o ‘morrer’ fosse
‘o elemento coercitivo’ que une diversas manifestações da vida.
Gostaria que se tornasse quase a e s t r u t u r a do espetáculo.
Segundo o princípio do a c a s o descrito no início,
eu tinha encontrado um processo análogo em uma obra de Sbigniew Unilowski (1909-1937) intitulado O quarto comum, onde da primeira até a ultima página, somos testemunhas do MORRER do protagonista do romance.
E aquilo que é ainda mais extraordinário: o Autor ali descreveu / prevendo / a sua própria morte.
‘O quarto comum’ o lugar do tempo presente, do nosso tempo. O INFERNUM do
quotidiano terrivelmente nada, abastecido dos mais baixos epítetos.
Talvez, neste espetáculo, reencontraremos ecos remotos dos personagens ou dos fatos daquele romance.
Não se trata da transposição do texto literário para a cena.
O procedimento é de acordo com meu princípio de não servir-se de uma realidade ‘construída’,
composta, mas sim de obras com uma realidade ‘pronta’ / prête / , com personagens e objetos ‘encontrados’.

É aquela ESFERA DA MORTE a fazer-se de um lance, como acontece na hora da morte,
aprecem as CHAPAS FOTOGRÁFICAS DA INFÂNCIA. Da minha infância. Porque aquele que jaz no leito de morte sou EU-MORIBUNDO, e o SOLDADINHO no CARRINHO / no meu carrinho/, por mim evocado, sou EU-QUANDO TINHA SEIS ANOS.
Com o seu SÉQUITO formado nos sonhos infantis somente por GENERAIS, um SÉQUITO fiel que o defende e com o qual brinca.

É aquela ESFERA DA MORTE a fazer com que a fama e glória da nação apareçam sob a FORMA do
esplendor mortuário e da decadência da morte.
É aquela esfera da morte a fazer com que, procurando na vida
uma c o r r e s p o n d ê n c i a do ritual da morte, da SEPULTURA, a encontremos no conceito de PRISÃO.

… como se diante de uma tumba aberta…
se fechassem atrás dele as portas da prisão…

É aquela ESFERA DA MORTE a fazer sim
que, à imagem da OBRA DE ARTE,
a mais notável expressão do espírito humano,
se sobreponham impiedosamente
a chapa fotográfica da PRISÃO e do SUPLÍCIO.

Nurembergue, 22 de maio de 1985
Tadeusz Kantor

A prisão

A prisão.
Este conceito,
assim como a sua perfeita realização,
de cada ponto de vista minuciosamente estudado
no curso da história da humanidade,
é uma inegável ‘obra’
do homem e da civilização.

O fato de ela ser dirigida
contra o homem,
que seja um mecanismo da brutal violência
feita
ao livre espírito do homem
constitui um dos lúgubres absurdos
de que abunda
a dita história,
a famigerada ‘magistra vitae’.

Deixemos então para a história
a administração da justiça
e o veredicto da condenação…

e nos ocupemos do seu aspecto
ontológico
e … da escatologia.

A p r i s ã o
Uma palavra difícil de pronunciar…
Tem alguma coisa de definitivo,
quase como se tivesse acontecido alguma coisa que nada e ninguém esta em condições de revogar…

… As trancas da prisão se fecham atrás dele…
Como no cemitério
diante da tumba aberta,
na qual
‘entra’ o morto…
Em um segundo os seguranças terão terminado o seu trabalho.
Os vivos permanecem ali ainda por muito tempo…
Como se não pudessem resignar-se à idéia
de deixá-lo
‘lá’,
sozinho,
inimaginavelmente só…
Permanecem ali
inertes e impotentes
na orla
de alguma coisa que
não podem nem tocar e nem nomear…
Aquele que já está ‘do outro lado’
inicia
o seu caminho…
o fará
sozinho consigo mesmo
assim infinitamente mísero,
abandonado,
entregue a si mesmo…
por este caminho deserto e terrível
ele procede
sem destino e sem esperança…
E somente o som daquela marcha…

… Em um momento e em um acesso
– ousarei dizer –
de temerária imaginação,
e um pouco de loucura,
apareceu diante dos meus olhos
esta imagem,
em uma tétrica paisagem de horror,
como a idéia,
que a despeito da razão e de qualquer lógica,
em modo cruel e absurdo,
como uma gargalhada cínica,
se apresenta ao início
do meu novo TEATRO.

… Ainda uma vez descubro
aquela força maldita
e entorpecida pela loucura
que através da transgressão,
de um perplexo deslumbramento
– e apenas deste modo –
é capaz
de transmitir,
como em um grito trágico,
a mais dramática manifestação
da ARTE e da LIBERDADE!

… A p r i s ã o …
Um conceito
Separado da vida por uma barreira inacessível,
in – humana,
‘impossível’ e tão ESTRANHA que
– admitamos esta provável blasfêmia –
poderia encontrar-se,
em qualquer parte, nas mais remotas encruzilhadas,
com a OBRA DE ARTE…

… Servir-se deste aguçado conceito
como um ‘sinal’ da criação de uma obra de arte
poderia parecer escandaloso ou imoral.
Tanto melhor!
Isto significa somente
que estamos em uma boa estrada!!

Cracóvia, 1984
Tadeusz Kantor

O personagem encontrado

Somente verso a metade do espetáculo aparece Veit Stoss.
Não é nossa intenção enfrentar a história da sua vida.
Digamos que Veit Stoss foi ‘e n c o n t r a d o’ , que é quase um ‘personnage trouvé’.
A palavra ‘encontrado’ tem um significado mais profundo do que pode parecer, mais profundo do que aquele que lhe foi atribuído pelos dadaístas.
Não se trata de reencontrar.
Não é o resultado da atividade real, quotidiano do
p r o c u r a r.
O objeto ‘encontrado’ tem suas conexões com o DESTINO, com o mundo DO LADO DE LÁ, com o mundo supra-sensível, com as regiões da MORTE.
Isso não tem explicações, é privo de finalidade, desinteressado,
quase uma pura obra de arte!
No meu espetáculo a figura de Veit Stoss não foi realmente projetada, a sua evocação não parte de um particular interesse pela sua vida ou pela impossibilidade da sua obra.
Deixo isto para a História da Arte.
ELE VEIO SÓZINHO! NINGUÉM O CHAMOU.
Vem a vontade de dizer:
apareceu vindo DO LADO DE LÁ.
Em teatro, uma situação semelhante se resolve de um modo bastante simples: através de um comportamento estranhado do ator que faz com que se entenda que ele não é deste mundo.
Não é interessante este ‘simular’.
Se, ao contrário, conseguimos guiar a atuação do ator de modo que ele tenha o caráter descrito ‘personagem encontrado’: a falta de finalidade,
a i n e f i c i ê n c i a…
exprimiremos com muito mais força e verdade a sua proveniência ‘da outra margem’, ‘ do outro lado’.

Cracóvia, março de 1985
Tadeusz Kantor

Eu

Os dois personagens gêmeos / no espetáculo /
não são simplesmente dois sósias, são alguma coisa além.
O sósia é um segundo exemplar feito fisicamente e biologicamente em modo análogo ao primeiro.
Esta perfeita semelhança pode provocar na vida diversos efeitos:
Cômicos ou trágicos.
Na literatura do gênero fantástico pode conduzir a um tipo de plena integração biológica e espiritual / por exemplo, quando um morre, morre também o outro /.
Aqui, no espetáculo, este fenômeno assumiu uma forma extrema, que foge da lógica do raciocínio e da compreensão.
Uma recíproca perda de consciência do próprio ‘eu’.
Uma forma de puro agir cênico.
Quando estão juntos
um troca o outro por si mesmo.
Quando, ao contrário, estão sozinhos,
e sabem, por exemplo, que devem estar em um lugar e não em outro,
ficam surpresos pela própria ausência
e vão ao encontro de si mesmo.
Parece-me que esta manifestação, para além do bom senso,
constitui uma metáfora
e se refere à essência mais profunda da arte e da vida
… Vou a busca de mim mesmo! …
Eu mesmo me acredito ‘o outro mim mesmo’:
a minha obra
a minha obra e eu.
Uma de frente ao outro!
É um tipo de loucura.
Neste momento tomo consciência de uma minha estranha propriedade / provavelmente não somente minha / na qual não prestava atenção e não podia disso tirar conclusões de ordem geral.
Na minha juventude, quando as minhas forças psíquicas interiores tinham ‘mobilidade’ bem maior e maior capacidade de ‘sair’ do âmbito da consciência do meu organismo – capacidade para
‘excursões’ ou viagens fora de si,
e capacidade de conjugar-me com fenômenos e sistemas fora de ‘mim’,
enquanto estava pintando um quadro,
depois de um certo tempo / e tratando-se frequentemente de muitas, muitas horas /
era como se desvanecesse, perdesse consciência do meu existir,
um tipo de desmaio, mas sempre lúcido.
Como se o quadro fosse eu mesmo.
Era uma sensação muito concreta / nenhuma poesia /,
vagamente prazerosa / nenhum “encantamento”,
um tipo de ausência.
Escrevo tudo isto depois de ter criado uma situação cênica, depois de um ensaio com os atores.

16 abril 1985
Tadeusz Kantor

O reflexo

No fundo sujo e escuro da t e r r a vi um ponto brilhando com a dimensão de uma moeda. Era tão luminoso que não poderia pertencer, de nenhum modo, à matéria terrosa, da onde nascem todos os objetos.
Quando levantei os olhos para o alto, acima do telhado das casas, vi o c é u.
Também muito luminoso.
Não pertencente à terra.
Aquela ‘coisa’ que resplendia era o c é u.
Refletido em um estilhaço de espelho.
O REFLEXO.
Um fenômeno muito maltratado naquela arte que se rebela ao naturalismo.
O homem que pela primeira vez
viu-se a s i m e s m o
na superfície da água plácida
deve ter tido uma iluminação.
Apesar dos conselhos dos surrealistas
e dos visionários
não entremos, pelo amor de Deus, e não atravessemos a superfície do espelho.
Permaneçamos d i a n t e ! !
O REFLEXO é por si só uma maravilha!
Fecha em si mesmo algum segredo do mundo.
Como se a realidade
tivesse sido arrancada de si mesma
e fosse ali fechada.
COMO EM UMA PRISÃO
ou
COMO SE TIVESSE SIDO COLOCADA NA TUMBA.
Como se não pertencesse mais a este mundo.
Assim se realiza a impossibilidade de encostar a vida na morte.
Juntas.
Obviamente na ilusão e no j o g o c ê n i c o.
A sensação de tocar a eternidade. Vivendo.

14 abril 1985
Tadeusz Kantor

A ingloriosa passagem do mundo dos mortos para o mundo dos vivos

Quando em 1944, durante a guerra, no Teatro Clandestino, estava trabalhando em um espetáculo a partir do drama O retorno de Ulisses, de Stanislaw Wyspianski, nas notas de direção, para o meu uso pessoal, escrevi esta breve frase:

“Ulisses deve retornar de verdade”…
O sentido desta frase é, até hoje, válido para mim.
Ela significava – nem mais nem menos –
a necessidade de encontrar a ‘ p a s s a g e m ’ do outro mundo para este nosso.

Este era o centro das minhas longas reflexões e das difíceis discussões.
Reflexões sobre concepções de teatro.
Do meu teatro.
Em um contexto místico esta proposição podia constituir uma solução possível.
No contexto teatral é necessário ter presente a necessidade de realizar operações
totalmente não-convencionais e in-sólitas.
Era urgente d e s c o b r i r o método.
Ulisses não voltava somente da guerra … de Tróia.
Voltava também e, sobretudo, do ‘além-tumba’, do reino da morte,
do ‘outro-mundo’ para a esfera da vida, ao reino dos vivos, de nós mesmos.

Ulisses que retorna se torna, na minha concepção de teatro,
o p r e c e d e n t e e o p r o t ó t i p o para todos os sucessivos personagens do meu teatro.
Foram muitos. Um inteiro cortejo. Em muitas obras e dramas.
Do país da F i c ç ã o. Todos estavam ‘mortos’, todos voltavam para o mundo dos vivos, ao nosso mundo, ao tempo presente.
A contradição: m o r t e – v i d a correspondia perfeitamente à oposição:
F i c ç ã o – r e a l i d a d e .
A este ponto bastava somente proceder em modo coerente e tirar conclusões radicais para o método de atuação, sem deixar-se cair em tentação dos notórios e duvidosos métodos psicológicos para mostrar estados místicos e situações limites entre ‘este’ e ‘o outro mundo’.

Se o âmbito da morte / da eternidade / é absoluto e puro, a esfera da vida / da realidade /
constitui um gênero inferior. A matéria da vida é notoriamente ‘poluída’.
Tal ‘poluição’ contribuiu de modo decisivo à criação da arte e do teatro.

O personagem ‘morto’ / na ficção do drama / de algum modo elevado através da morte, como em um ‘mausoléu da eternidade’, encontra o seu ‘duplo’… vivo.
Mas vivo em uma maneira suspeita. Ele vem brutalmente reduzido a um personagem quotidiano, nada, ‘baixo’, a uma mísera imitação através da qual não descobrimos mais que indícios da grandeza do ‘protótipo’. E da eternidade.
Podemos perceber a grandeza morta somente através da realidade viva, quotidiana, de gênero
inferior, a morte através da mesquinharia do quotidiano.
A ficção / do drama / através do lugar real do mais baixo escalão.

O sentido fundamental do teatro

A reencarnação é um conceito extremo, último, no confim mais remoto da razão. Um conceito
elaborado pela humana fé, pela rebelião e pelo mito da imortalidade, por certas intuições de uma possível conexão com a esfera transcendente.
No estrato mais profundo da existência.
É o eco do ‘paraíso perdido’ e do equilíbrio perfeito, absoluto, inacessível à nossa cultura e à nossa mentalidade, passado mais de uma vez pelo inferno da cética e crítica razão.
Nem restou um estado nostálgico, consciente do desafio.
Nisto está a origem, seja da tragédia antiga com a sua concepção de irreversibilidade do destino humano, seja o pessimismo intelectual da nossa época, enquanto hoje
– eu estou profundamente convicto –
isso se torna a ú n i c a c h a n c e,
m o t i v o e r a z ã o d a
c r i a ç ã o a u t ê n t i c a.
O t e a t r o – continuo a insistir – é o l u g a r
q u e r e v e l a, como um
s e g r e d o g u a r d a d o n o r i o, as armas da ‘passagem’ ‘da outra margem’ para a nossa vida.
Diante dos olhos do espectador se apresenta o ATOR que assume a condição do MORTO.
O espetáculo, com seu caráter de rito e cerimônia, se torna um c h o q u e .
E eu o chamarei, com muito prazer, m e t a f í s i c o.

A Vida – realidade do mais baixo escalão

Repreensão:
Somos cautelosos e não acreditamos facilmente nos indivíduos que por estas razões metafísicas nos oferecem um pathos esquálido e obtuso, gestos pretensiosos e vazios de xamãns e ‘gurus’ de vários gêneros.
Vistoso caráter circense, ironia, sarcasmo, senso de humor, são
o l a d o h u m a n o da metafísica.
E o sinal da humana inteligência.
É a parte boa das heranças da idade da RAZÃO.
Mais uma coisa, raramente levada em consideração:
Todas as formas / na arte / que possuem a suprema ambição de encontrar a afirmação da vida em um mundo chamado “o além” estão em OPOSIÇÃO à vida, ao seu status e ao seu código.
Constituem o i n v e r s o da vida e, por isso, nas categorias desta última,
são e s c a n d a l o s a s e c h o c a n t e s.
Teatro Zero / ano 1963 / foi um teatro de fenômenos e de estados ‘abaixo de zero’, ‘in minus’, em direção ao vazio, em direção à futilidade, ao nada, em direção aos valores ‘baixos’.
Por isso eu proclamava a realidade das razões materiais mais baixas
e – horror! – morais.
Por isso, em teatro, substituía o conceito arcaico, patético e ‘divino’
de r e e n c a r n a ç ã o
com um humano e baixo
‘f a z e r – s e p a s s a r p o r’,
que admitia personagens provenientes do ambiente
dos e n g a n a d o r e s.
Uma outra noção:
‘insinuar-se’
sugere um obscuro procedimento de ‘forças maléficas’.

(Tradução do catálogo de estréia do espetáculo em Milão por Márcia de Barros)

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