Kamille Viola, colaboração para a CNN
30/07/2021
Rosinha de Valença e a Bossa Nova
Em 1963, Maria Rosa Canellas veio ao Rio de Janeiro em busca de um trabalho como datilógrafa. Perdeu o prazo, mas quis ficar mais um tempo na cidade. Havia trazido o violão escondido e fez amigos. Pouco tempo depois, começava a carreira musical de Rosinha de Valença, uma das maiores violonistas da história do país, que completaria 80 anos nesta sexta-feira (30/07/21) se estivesse viva.
“Rosinha foi uma pessoa que se esforçou muito, por ser mulher, de origem pobre, buscando uma oportunidade através do violão, em um contexto difícil. Mas o talento dela foi reconhecido. É considerada uma das maiores instrumentistas e compositoras do Brasil, da segunda geração da bossa nova, e uma das maiores violonistas do mundo”, conta a pesquisadora Solana Rovena, que desde 2017 se debruça sobre a vida e obra da cantora, compositora e musicista.
Sua conterrânea, Solana Rovena hoje se dedica à preservação da memória de Rosinha. “Infelizmente eu não tive a oportunidade de conhecê-la, porque quando ela partiu eu era adolescente e só tinha ouvido comentários dos meus pais a respeito de uma artista da cidade que estava doente há muitos anos. Eu não tinha a dimensão da importância dela e, muitos anos depois, movida pela curiosidade e o desejo de homenageá-la, busquei informações diretamente com a família dela, meus conterrâneos. Constatei que não havia nenhum material sobre ela”, recorda.
Ela idealizou e realizou sozinha a exposição “Chega de saudade — Rosinha de Valença” em 2018 e, desde então, mantém perfis dedicados à artista nas redes sociais. Também anuncia a produção de um documentário em homenagem a Rosinha e espera que a artista receba um reconhecimento à altura de sua importância para a música do país. “Não cabe mais considerar o Brasil um país ‘sem memória’. Todos nós estamos envolvidos buscando mudar essa realidade”, acrescenta Rovena.
O nome artístico de Rosinha faz referência a Valença, município onde a artista nasceu e viveu até a juventude, no sul do estado do Rio, a pouco mais de 150 quilômetros da capital — e onde também nasceu a cantora Clementina de Jesus. Seu interesse pela música surgiu cedo, ao ver tocarem o tio, Fio da Mulata, que atuou ao lado de Aracy de Almeida e Lúcio Alves, entre outros, e o irmão Roberto, que integrava um conjunto regional.
De família pobre, Rosinha não teve chance de estudar formalmente, foi autodidata. Aos 12 anos, já tocava em bailes e na rádio da cidade. Porém, para sua família, seu destino seria tornar-se professora ou datilógrafa, como tantas moças da época.
“Meu tio boêmio, que a cidade inteira conhece, foi o único que acreditou e gostava quando eu pegava o violão pendurado na parede — que era dele, por sinal — pedindo que eu tocasse mais. Eu tocava dias inteiros no quarto, queria aprender violão, ser concertista, estudar para valer. Mas uma mulher é uma mulher. Numa família pobre, esse negócio de conservatórios e academias não existe. Eu precisava trabalhar e esquecer. Se existia mulher tocando violão, tocando música popular — sinônimo de boemia, má fama, essas coisas — eu não haveria de ser exceção”, desabafou ela em entrevista ao Jornal do Brasil, em 11 de janeiro de 1972.
No Rio e na bossa
Em 1963, aos 22 anos, Rosinha mudou-se para o Rio de Janeiro. Ligava o rádio e ouvia de tudo, como forma de estudar, como fazia nos tempos de Valença. Os amigos a levaram à boate Au Bon Gourmet, que o jornalista Sergio Porto frequentava. Era a primeira vez da artista em uma casa do tipo. Tocou “tudo o que sabia” e saiu dali com um contrato, além de ter caído nas graças de Porto e de Baden Powell.
Seu virtuosismo e criatividade na criação dos arranjos, bastante elaborados, foram determinantes para que ela se tornasse uma das instrumentistas mais importantes da bossa nova. Seu estilo é vigoroso e rítmico. Ela e Baden Powell mudaram a linguagem instrumental da bossa nova no país.
O jornalista a apresentou a Aloysio de Oliveira, do Bando da Lua, que a contratou para gravar seu primeiro disco, pela mítica gravadora Elenco: “Apresentando Rosinha de Valença” (1964). A contracapa traz um texto curto de Sergio Porto: “Elogiar Rosinha eu não posso. Sou padrinho da moça. Quando ela chegou ao Rio, vinda de Valença, fui eu quem a levou, pela 1ª vez, para se apresentar em público. O sucesso foi enorme. Escolhi nesse dia o seu nome de Rosinha de Valença porque achei que ela toca por uma cidade inteira.” Versão um pouco diferente da contada pela artista.
Nessa mesma época, ela fez uma temporada na boate Bottle’s, no Beco das Garrafas, berço da bossa nova. Seu virtuosismo ao violão logo chamou atenção, principalmente porque não havia outras mulheres com tanta destreza no instrumento. “Fiz grandes amigos — Roberto Menescal, Tom, Luizinho Eça — que me ajudaram muito, mas engraçado: havia uma certa distância, um certo medo, eu sentia isso, de que tomasse um dia o lugar deles, uma caipira boboca e de cara amarrada”, afirmou Rosinha ao Jornal do Brasil em 1972.
“Mas o medo maior era meu mesmo: a família longe da minha vida, das minhas decisões, tendo que morar em Copacabana, um lugar de que ouvia falar como o pior para uma moça sozinha, e vivendo de uma profissão insegura com tocar violão, e violão popular. Era alguma coisa que poderia acabar de uma hora para outra, e eu seria mais uma a voltar para o interior, derrotada. Uma mulher é uma mulher, a velha história.”
O calote nos Estados Unidos
Em 1964, Rosinha tocou no histórico programa O Fino da Bossa, comandado por Elis Regina e Jair Rodrigues. No mesmo ano, partiu para os Estados Unidos com Sergio Mendes, Jorge Ben, Wanda Sá, Chico Batera e Tião Neto. Jorge acabou abreviando sua passagem por terras americanas — por sinal, diz-se que ele teria feito “Bicho do Mato”, de “Ben é samba bom” (1964), inspirado pela tímida Rosinha.
Mas a trupe ficou por lá, e o período rendeu dois álbuns: “Brasil’ 65 Wanda de Sah featuring The Sergio Mendes Trio” (1985) e “In Person at El Matador!”, de Sergio Mendes & Brasil’ 65. Rosinha ainda gravou o disco “Bud Shank & His Brazilian Friends”, com o saxofonista e flautista americano, que também conta com a participação de João Donato, Chico Batera e Sebastian Neto.
“Uma gravadora americana me contratou por cinco anos, mas eu não quis ficar longe do Brasil, porque aí mesmo é que ia complicar a minha vida. Aceitei trabalhar com Sergio Mendes, por três anos, e veio a primeira lição da ‘vida artística’: Sergio não pagou como prometera e eu me senti desvalorizada”, reclamou na entrevista.
As dificuldades por ser mulher em uma função dominada pelos homens sempre estiveram presentes. Rosinha tinha de se esforçar mais do que eles para provar seu talento. “Eu era uma mulher que precisava de sorte, porque era a única contra um número enorme de violonistas, um bando de homens que não estavam a fim de me ceder um lugar na peça”, desabafou ela, que também tocava outros instrumentos, como cavaquinho e tamborim.
“Quantas vezes fazia acordes fortíssimos para acordar as pessoas, para que elas calassem um pouco a boca e prestassem atenção: quando um artista toca quer ser ouvido, não importa que ele esteja de saias ou de cuecas.”
Em 1967, Rosinha voltou ao Brasil e passou a integrar a banda de Maria Bethânia no espetáculo “Comigo me Desavim”. No ano seguinte, a convite do Itamaraty, partiu em uma turnê que passou por Portugal, Itália, Suíça, Israel, Rússia, Angola, Moçambique, Zimbábue e África do Sul. Nesse período, trabalhou com artistas como Stan Getz, Sarah Vaughan e Henry Mancini, entre outros.
Conheceu Martinho da Vila no Festival Internacional da Canção de 1970, quando ele defendeu a música “Meu Laiaraiá” acompanhado por ela e pela Turma do Samba. Martinho lembra que, àquela altura, o talento da artista já era reconhecido. “As mulheres que tocam violão como solistas são poucas. Naquela época, ela já tinha uma ótima reputação como violonista, tanto é que, lá no festival, eu falei: ‘A Rosinha que vai tocar, me acompanhar aí’, e no mesmo dia providenciaram de botar o nome dela no painel”, conta.
A partir dali, Rosinha passou a integrar a banda do sambista e tocou com ele por mais de oito anos. “A convivência era muito boa, ela era gente boa, divertida. Era boa música, fazia muito sucesso dentro dos meus shows. Tinha um momento dentro do espetáculo em que ela se apresentava sozinha”, conta Martinho. Rosinha participou de diversos discos dele, como “Canta, Canta minha gente” (1974), e ele produziu um disco dela, “Cheiro de Mato” (1976).
Em 1974, ela formou a própria banda, pela qual passaram nomes de peso como o pianista João Donato, o flautista Copinha e as cantoras Dona Ivone Lara e Miúcha. No ano seguinte, lançou o álbum “Rosinha de Valença e Banda”. Também saíram trabalhos seus nos Estados Unidos, Alemanha e França, por selos e gravadoras importantes, como RCA, Odeon, Forma, Pacific Jazz e Barclay.
Entre os seus lançamentos seguintes, estão “Sivuca e Rosinha Valença ao vivo” (1977), com o famoso acordeonista, “Violões em Dois Estilos: Rosinha de Valença e Waltel Branco” (1980), com o renomado maestro, e “Encontro das águas” (1983). Em 1989, saiu aquele que seria seu último álbum, “Rosinha de Valença & Flavio Faria Featuring: Toots Thielemans”, com o reverenciado gaitista belga.
Leci Brandão, que conheceu Rosinha por meio de Martinho da Vila, tem duas parcerias com a compositora: “Natureza”, do LP “Metades” (1978), e “Fim de festa”, gravada com a participação de Alcione em “Essa tal criatura” (1980). Leci lembra de Rosinha com carinho. “Foi muito legal, porque a Rosinha era um monstro sagrado no violão. Tinha uma capacidade de execução fantástica e era uma pessoa assim muito, muito simples mesmo, sabe? Você conversava com ela, tomava um negócio, de repente já estava fazendo música”, diz.
A sambista conta que, apesar do machismo reinante no meio musical — que ela, uma rara compositora de escola de samba, também sofreu —, a violonista já tinha conquistado seu lugar na música brasileira. “A Rosinha o pessoal respeitava. Era uma mulher que tocava um violão diferente. Tocava muito, muito bem, muito bem, solava e tal. Era fantástico. Ela sentava no banquinho ali, tocava o violão e ia embora”, diz, frisando que foi Rosinha que apresentou Dona Ivone Lara (a quem chamava de comadre) a Maria Bethânia. Em 1978, a cantora baiana gravaria, em dueto com Gal, “Sonho meu”, de Dona Ivone Lara com Délcio Carvalho, o que acabaria por alavancar a carreira da sambista do Império Serrano.
Em 1992, Rosinha estava de férias no Brasil e havia combinado com Martinho da Vila de os dois fazerem um disco de voz, violão e pandeiro. Ela iria voltar para a França, onde morava desde 1988, quando passou mal, no dia 13 de abril, em seu apartamento em Copacabana, no Rio. Hipertensa, teve duas paradas cardíacas e ficou em coma por quatro meses. Uma lesão cerebral a deixou em estado vegetativo.
Foi levada de volta para Valença, onde morou por oito anos com uma irmã Mariló, e quatro com outra, Maria das Graças. Foram realizados shows beneficentes para custear seu tratamento, e artistas como Martinho e Emílio Santiago também ajudaram financeiramente. Em 2002, Maria das Graças lamentou ao jornal O Estado de S. Paulo que Rosinha não recebia mais visitas: “Todos desapareceram.” Rosinha morreu aos 62 anos, em 10 de junho de 2004, de insuficiência respiratória.