História do Teatro | Do Rito Primitivo ao Nascimento do Drama
Texto: Cristina Tolentino
cristolenttino@gmail.com
O Jogo Lúdico
O homem primitivo era uma criatura dada às práticas lúdicas. Desde o início foi um imitador, trazendo dentro de si uma incontida ânsia de “ser outro”. Ele partilhava esse atributo com os animais, mas ultrapassava-os na flexibilidade de seu corpo e voz, na desenvolvida consciência de sua vontade e na capacidade de ordenar seu cérebro.
Também brincava com seus irmãos animais, descarregando não só sua vitalidade física, mas preparando-se para ações significativas, como a luta pela sobrevivência, pela vida.
Essa luta pela existência forçou o homem primitivo a uma visão declaradamente prática e utilitária: queria comer regularmente, conquistar seus inimigos e pôr-se a salvo de ataques.
Assim, logo aprendeu que podia realizar seus desejos, simbolizando-os através dos ritos. E o jogo teatral, a noção de representação, nasce essencialmente vinculada ao ritual mágico e religioso primitivo.
Máscara de Bali – usada pelos dançarinos balineses
Máscara cerimonial de uma ilha da Nova Irlanda
O Homem Caçador
O homem caçador, antes de iniciar a caça, realizava rituais que o ajudaria na sua missão. Os atuantes meio dançavam, meio representavam (movimentos de corpo, pulos, saltos), cobriam-se com máscaras, peles e folhagens para identificar-se com o espírito animal.
Dessa maneira, o homem primitivo começava a aguçar sua consciência da natureza e intensificava seu ajustamento a ela. Representava uma caçada e seu sucesso nela, tentando torná-la realidade.
O Homem Agricultor
Quando este homem caçador (bastante nômade) passa a estabelecer-se em comunidades (devido ao desenvolvimento da agricultura), começa a desvendar a relação entre seu suprimento de alimentos e a fértil estação das chuvas ou do máximo calor solar.
Seu maior terror era a colheita arruinada e um inverno rigoroso. Toda sua concentração estava focada no medo do inverno (relacionado com a morte) e na esperança da primavera (relacionada com a vida).
Neste momento, começa a incluir efetivamente algo de pensamento científico em seu rito dramático. Uma série de rituais se desenvolve em determinados períodos do ano: a morte era expulsa no solstício de inverno e durante o equinócio vernal, as tribos celebravam o ritual da primavera.
Evolução dos Ritos
Gradualmente os ritos assumem maior complexidade: ritmo de dança, símbolos mais sutis e representações mais dinâmicas. A dança pantomima se torna a mais acabada das primitivas formas de drama.
O sacerdote que conduz estes ritos, vai assumindo diversas funções dentro dessa complexidade: torna-se um coreógrafo (enquanto condutor de danças mais elaboradas), um inventor (criando os primeiros “adereços” teatrais, quando por exemplo, emprega pedaços de galho em ziguezague para imitar o trovão e o relâmpago que surgem durante a estação chuvosa), um poeta (em virtude da imaginação que o capacita a animar a natureza ou personificar suas forças como espíritos), um cientista (desde que é um fazedor de milagres, um feiticeiro que exorciza doenças – antecipando o poder curativo ou purgativo do drama – e um proponente da ideia de que a humanidade pode obter o domínio da natureza), um filósofo social (pois é quem organiza a representação como atividade comunitária e amplia a realidade da comuna primitiva. Sob sua liderança a natureza não está sendo dominada para o indivíduo, mas para a tribo).
Sociedade Primitiva
Outros ritos diretamente relacionados com a organização social primitiva, desenvolveram-se sob sua tutela – a iniciação dos jovens na tribo e as diversas maneiras de adorar os ancestrais que cristalizam o conceito da sociedade primitiva.
Com toda probabilidade esse herói, o sacerdote, é o primeiro deus – a personagem sobre cuja imagem são criados os espíritos da natureza e seres divinos. Muito antes que o homem primitivo pudesse conceber a idéia abstrata de um poderoso agente sobrenatural, tinha que competir com um ser humano todo-poderoso.
Assim, se essa figura foi potente enquanto estava viva, poderia ser igualmente potente após sua morte. Ela poderia voltar como um fantasma cuja ira deveria ser prevenida ou apaziguada com ritos tumulares.
As boas razões para essa ira: poderia ter sido assassinado por filhos ciosos de seu autocrático controle das propriedades e mulheres da comunidade; poderia ter sido chacinado pela tribo num ato de rebelião; poderia também ter sido morto, porque a tribo julgou oportuno transferir sua alma mágica e doadora de força para o corpo mais jovem e vigoroso de um novo rei sacerdote.
Até mesmo sua morte natural poderia encher os descendentes de sentimentos de culpa, por algum desejo inexpresso de vê-lo destruído. Ao lado disso, a potência do morto também poderia ser de natureza benéfica, pois ele foi um guia e zelador de seu povo.
Assim, o principal assunto da tragédia, a MORTE, ingressa no teatro. O homem primitivo nega a morte trazendo de volta o falecido sob a forma de espírito, e o rito do ancestral ou adoração do espírito converte-se em uma representação gráfica dessa ressurreição, nascendo assim, os Ritos Tumulares.
O túmulo torna-se o palco e os atores representam fantasmas.
TEATRO – evocação dos mortos, algo de ressurreição. Espaço da morte e do crivo da vida. Quando, nessa longínqua data, a MORTE entrou no palco, a TRAGÉDIA havia nascido.
Orgia Báquica
Ritos de fertilidade
Uma outra forma de negar a mortalidade era aumentar o índice de nascimentos e este era da maior importância para tribos rivais. Daí, vieram representações que interpretavam e induziam à procriação: os ritos de fertilidade.
Os RITOS FÁLICOS ou SEXUAIS eram caracterizados por muitos festins e tendiam a reproduzir elementos eróticos do ato sexual. Permitia-se uma total liberação da libido reprimida.
Dessas pantomimas é que nasceu a COMÉDIA, com sua imensa alegria e com o riso que silencia muitas ansiedades ou dores do coração do espectador.
A vida era também afirmada pela adoração da potência de um animal. Era costume sacrificar um touro, cavalo, bode ou outra criatura e incorporar seu “mana” ou poder mágico, através da partilha da carne e do sangue. Assim, a morte do animal sagrado era simbolicamente “desfeita” de diversas formas.
Se, por exemplo, o sacerdote vestisse a pele de um animal e dançasse, ele podia provar que o animal ainda estava vivo e na realidade era indestrutível.