TOM WAITS — RAIN DOGS (CHUVA DE CACHORROS) — UM TOUR NOS INFERNOS
Crônica da Era do Rock, por Rodrigo Leste
Eu já andava de saco cheio da mesmice da música pop quando me deparei com o Rain Dogs, de Tom Waits. Na época eu apresentei, à Rádio Geraes (que tinha começado a pouco as suas atividades em BH), o projeto do Programa Radiopoemas. Pílulas do melhor da poesia mundial, apresentadas por mim. A especialidade da rádio: R&B e rock de alta qualidade. Foi o João Guimarães, dono da emissora e baterista da banda Kamikaze, que aprovou o meu projeto, e ainda sugeriu um trecho da música Jockey Full of Bourbon, de Tom Waits, como fundo da vinheta de abertura de Radiopoemas. Concordei totalmente com a escolha e logo fui conhecer o som de TW.
A música escolhida faz parte do álbum Rain Dogs (1985). O som de TW me balançou. Pensei: “Ufa! Até que enfim alguém sai da mesmice dessa pop music caretinha, com começo, meio e fim mais do que previsíveis e usando os mesmo clichês manjados.” Rain Dogs traz, além do timbre de voz rouco, de bêbado e desesperado de Tom (que é ainda mais grave do que o utilizado por Joe Cocker), um instrumental que sai totalmente dos padrões mundiais do popzinho banal. A música de Tom Waits, principalmente nesse álbum, é visceral, sai das entranhas do artista e mexe com os ouvintes. Os recursos musicais são variados, estranhos, indo da música de cabaré ao jazz, sem cerimônias ou limites. Os temas escolhidos para as composições também fogem ao ramerrão do lamento vulgar do amor não correspondido. As letras, que tratam de assuntos e lugares que não fazem parte do cardápio convencional, produzem fina iguaria musical que acariciou meu paladar auditivo.
E a capa de Rain Dogs já dá o recado: um homem, que não é Tom Waits, atirado aos braços de uma mulher como um náufrago que se agarraa aquilo que o impedirá de se afogar. A imagem mostra a aflição e o desamparo de quem busca um refúgio para a sua alma despedaçada e o fígado estropiado. As duas figuras da capa são frequentadores do Café Lehmitz (perto da rua boêmia de Hamburgo). Eles são chamados de Lily (a mulher) e Rose (o homem). O café não existe mais. Dizem que foi transformado em uma igreja. A foto é do sueco Anders Petersen que conheceu o Café Lehmitz no final dos anos 1960 e passou a maior parte de seus dias e noites lá, por mais de três anos, fotografando seus clientes: marinheiros, foguistas, estivadores, taxistas, prostitutas, dançarinas de striptease e cafetões. Com seu trabalho impressionante de retratos íntimos, Anders Petersen se tornou uma das figuras centrais da fotografia europeia. Arrisco dizer que a sua obra dialoga com as despirocadas pinturas de Francis Bacon (1909-1952).
A estranha sonoridade das músicas de RD, remete ao mundo dos quadrinhos de Will Eisner, com sua New York sombria, cheia de malucos (no sentido de dementes) se atropelando. Traz a melancolia dos quadros de Edward Hopper (1882-1967) que revelam uma América sorumbática. Traz, ainda, álcool em grandes quantidades, barbitúricos, metanfetamina, desesperança, sacudidas em raras percussões. É daí que brota o som assombrado desse Tom Waits, marinheiro ébrio de perdidas ilusões.
Nunca me canso de ouvir RD. Outras produções de TW não me encantam tanto. Às vezes acho que ele exagera na dose, forçando a barra pras músicas ficarem quase repugnantes (Artaud compondo e interpretando canções). Ainda sobre o cantor é preciso lembrar que TW sempre aparece nos filmes de Hollywood. Gosto muito do bêbado (quase sempre é meio isso) cínico e semi-infartado que ele interpreta no filme Brincando nos Campos do Senhor (1991), baseado no excelente livro de Peter Mathiessen e dirigido por Hector Babenco. Tom atuou também em Licorice Pizza, Down By Law, Os Sete Psicopatas, Short Cuts e outros.
—O que é um cachorro de chuva?
O próprio Tom Waits ofereceu a seguinte explicação à Spin Magazine: “Você sabe que cachorros na chuva perdem o caminho de volta para casa”, ele disse. “Eles até parecem olhar para você e perguntar se você pode ajudá-los a voltar para casa. Porque depois que chove, todo lugar em que eles urinaram foi lavado. É como Missão Impossível. Eles vão dormir pensando que o mundo é de um jeito e acordam e alguém moveu os móveis.”
Quem quiser se lançar em mares nunca dantes navegados, escute Rain Dogs e vá fazer um tour nos infernos. Boa viagem!
Tom Waits – “Rain Dogs”
Revisão: Hilário Rodrigues
Colaboração midiática: @rodrigo_chaves_de_freitas
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