JORNAL O VAPOR E A REVISTA CIRCUS – marcos da contracultura brasileira
Crônica da Era do Rock, por Rodrigo Leste
Hoje abro um parêntesis no mundo do rock e passo para os jornais e revistas que publicamos nos anos de chumbo em BH e que fazem parte do mapa da contracultura brasileira.
Lá pelos idos de 1973/74 um grupo de entusiasmados jovens, do qual eu fazia parte, dedicou-se a produzir duas publicações: O Vapor e a Circus. Estávamos no auge da nefasta ditadura militar e mais na base da inocência do que da malandragem cuidadosa, metemos a cara e acabamos caindo nas garras da censura. O último número da revista Circus caiu nas malhas da lei. Trazia uma matéria denunciando as tretas de um famoso “gangster” das alterosas, o poderoso Luciano. “Don” Luciano era dono da rede de cinemas da cidade e possuía uma infinidade de lotes, fazendas e propriedades na capital. Seu “latifúndio” era fruto de recursos diversos como a grilagem e o uso da força bruta de seus capangas para tomar, na marra, terras e imóveis de gente humilde que não tinha como se defender. Além disso, o cidadão curtia o prazer de desvirginar mocinhas de classe baixa que eram arrebanhadas por rufiões para atender os caprichos do patrão.
A matéria “As Virgens de Don Luciano”, do jornalista Durval C. Guimarães atraiu a ira dos mandachuvas e a Polícia Federal recebeu a incumbência de apreender a revista. Baixaram na casa dos pais do jornalista Aloísio Morais, no Santo Antônio. O endereço aparecia no expediente da revista, mais para constar do que funcionar como redação ou sede da revista. Com o mandado de busca e apreensão em mãos, deram uma geral na casa e encontraram e recolheram uns poucos exemplares da Circus. Aloísio compareceu na sede da Polícia Federal com a revista. O Departamento de Censura carimbou com CENSURADO a publicação, de cabo a rabo. Ficamos na moita e, felizmente, não deu processo ou coisa parecida. De qualquer maneira, a Circus teve decretado o seu fim neste episódio.
A história dessas aventuras jornalísticas começou quando voltei dos EUA cheio de ideias oriundas da minha vivência no underground de lá. Em Michigan tive contatos diversos no meio artístico e cheguei a ajudar meu amigo Thomas Coy, a vender o jornal alternativo Flint’s Barricade (não estou certo se era esse o nome) que publicava com o apoio de ninguém menos do que o guitarrista Mark Farner, do Grand Funk Railroad. De volta ao Brasil, contei algumas passagens dessas experiências pro meu amigo Aloísio Morais, que na época fazia o curso de jornalismo na UFMG. Ele se empolgou e, coincidentemente, o pessoal do DCE-UFMG tinha comprado uma rotativa off set com a intenção de fazer um jornal, só que faltava a eles o know how. Fizeram contato com o Morais. Ele acabou acertando com a diretoria do DCE a produção de um jornal que seria distribuído para os estudantes. Assim surgiu o Gol-a-Gol. O jornal contava com participação de universitários e de alternativos, como eu. Um grupo foi se formando, tornando-se a “redação” do Gol-a-Gol: Maurício Valadares, Nem de Tal, Sérgio Gama, Nely Rosa, Flávio Serpa, eu, Morais e vários desenhistas como Weisvisthértini Almeida, Roberto Wagner, Gilberto Abreu, Luíz Maia, Humberto Guimarães, Benjamin, Roberto Moreno, Cacau e outros. Contávamos ainda com colaborações esporádicas de Luiz Vilela, Sérgio Sant’anna, Durval Campos Guimarães, Alberto Vilas e outras feras. Este mesmo grupo, com o apoio do DCE-UFMG, partiu para a publicação de um jornal cultural — O Vapor — dirigido ao público em geral.
Na maior alegria e descontração comemorávamos cada nova edição do Vapor pegando os jornais debaixo do braço e saindo pras ruas, vendendo os exemplares na base do corpo a corpo. Íamos nas filas de cinema, de shows, teatro, onde sempre éramos bem recebidos e trocávamos opiniões com quem nos lia.
Passávamos em bares, restaurantes, íamos na feira de artesanato, que acontecia na Praça da Liberdade e em outros locais onde havia algum evento. Fazíamos isso em grupo e a diversão era garantida pois, além das bem-sucedidas vendas, recebíamos muito incentivo de todo o pessoal. Com o dinheiro arrecadado produzíamos o exemplar seguinte.
O Vapor alcançou a marca de dez edições tratando de temas diversos como ecologia, psicanálise, política, cultura, trazia reportagens, ensaios e entrevistas, além da publicação de contos, fotos, poemas, charges, quadrinhos e ilustrações. Os textos eram opinativos. Fazíamos um jornalismo investigativo. Saíamos às ruas em busca dos acontecimentos e das personagens envolvidas em várias situações que jamais seriam pautadas pela grande imprensa.
Já a Circus surgiu com a ideia de ser uma revista dedicada à música. De cara fizemos entrevistas com Luiz Gonzaga, o Gonzagão, Rei do Baião, os Novos Baianos, Gonzaguinha e Moreira da Silva, que podemos chamar de Rei do Samba de Breque. Muitas dessas entrevistas aconteceram no Hotel Amazonas, um lugar bacana na época. Muitos músicos e artistas que se apresentavam em BH ali se hospedavam. Nem é preciso dizer que o Gonzagão era uma figura, um cabloco esperto, inteligente, com a língua afiada e traquejo mundano. Gostava de uma prosa e não se fazia de rogado, respondendo todas as perguntas com simpatia e aproveitando pra contar uns “causos” divertidos.
Com os Novos Baianos foi simpatia à primeira vista e rolou um papo legal com o letrista Galvão (depois nos tornamos amigos). A entrevista com Gonzaguinha foi feita por mim e Aloísio Morais, não me lembro em que local. O papo fluiu bem e Gonzaguinha, naquele distante ano de 1974, profetizou: “Há uma necessidade de síntese por causa da velocidade. Estamos vivendo numa era prestes a entrar na cibernética.” Com Kid Morengueira (Moreira da Silva) a entrevista também aconteceu no Hotel Amazonas e o artista apresentou-se mais como um gentleman do que como o malandro descolado que é incensado nas composições que interpreta. Moreira falou que a verdadeira malandragem é continuar vivo: “O bom malandro é o que ri por último.” As tiradas do cantor são famosas. No fim da vida, morava na frente do Cemitério do Catumbi, costumava dizer: “Moro aqui para dar menos trabalho aos que forem me levar para a última morada.”
Cinquenta anos se passaram e boas são as lembranças daqueles tempos de inquietação, criatividade e companheirismo. A Terra seguiu os rumos que conhecemos. Muitos dos que participaram dessas aventuras já ficaram pelo caminho, mas as histórias que contamos, desenhamos, fotografamos estão aí pra quem quiser ver nas páginas de O Vapor e da Circus.
Revisão: Hilário Rodrigues
Colaboração midiática: @rodrigo_chaves_de_freitas
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