ADONIRAN BARBOSA- um Garrincha musical
Crônica da Era do Rock, por Rodrigo Leste
Hoje pulo do rock pro samba no maior estilo ‘à vontade’. Sim, vou trazer um sambista, mas não é um qualquer! Trata-se do genial, irreverente, desconcertante, Adoniran Barbosa. Uma espécie de Garrincha musical que, com dribles encapetados, bagunçou o coreto da MPB careta e previsível. Sofreu, inclusive, críticas do grande Vinícius de Moraes que não sacou a genialidade de Adoniran e meteu o pau nos erros de português cometidos nas letras do autor de Saudosa Maloca… rsrs…
A Bahia deu o mote, mas foi o Rio de Janeiro que se tornou o berço do samba. A então capital federal exportava usos e costumes pra todo o país principalmente através das ondas do rádio. O Rio nos deu craques como Noel Rosa, Nelson do Cavaquinho e Cartola. Mas antes deles, na sala da casa de Tia Ciata, o couro comia solto com a participação de nossos primeiros grandes sambistas: João da Baiana, Pixinguinha, Sinhô e Donga.
São Paulo não tinha quase nada a ver com isso. Teve a Semana de Arte Moderna de 1922, trazendo poetas irreverentes como Mário e Oswald de Andrade e até Manuel Bandeira. Time de primeira com Tarsila do Amaral, Portinari e Villa Lobos. A capital paulista ganhava ares cosmopolitas, a grana do café e a vocação industrial transformaram a cidade no centro financeiro do Brasil. Mas não havia no horizonte da Pauliceia nada que pudesse soar como a bossa, o swing do samba carioca. Enquanto o Rio era a terra da gandaia, do carioca bem-humorado, Sampa era o lugar de gente sisuda, preocupada em ganhar dinheiro e correr contra o tempo; afinal: “São Paulo não pode parar!”.
Batizado João Rubinato, filho de imigrantes italianos, Adoniran não completou os estudos, foi logo à luta: trabalhou como tecelão, balconista e até garçom. Ficou famoso nos programas de calouros, onde ia vezes sem conta e era bombado por causa de sua voz fanhosa. Em 1935 enfim veio o sucesso: compôs, em parceria com o maestro J. Aimberê, sua primeira música: “Dona Boa”, eleita a melhor marcha do Carnaval de São Paulo daquele ano.
Adoniran também atuou como ator no rádio teatro. Dois de seus personagens, Zé Cunversa (um malandro) e Jean Rubinet (galã do cinema francês), conquistaram os ouvintes. A maneira de falar errado virou marca registrada não só do ator, mas também do compositor. Se isso era motivo de críticas, ele rebatia: “Só faço samba pro povo. Por isso faço letras com erros de português, porque é assim que o povo fala. Além disso, acho que o samba, assim, fica mais bonito de se cantar.”
Seu conceito se concretiza em grandes sucessos como Trem das Onze, Samba do Arnesto, Joga a Chave e Samba Italiano. Pouca gente sabe que músicas como Tiro ao Álvaro e Pafúncia foram feitas em parceria com Osvaldo Moles, escritor que redigiu inúmeros personagens interpretados por Adoniran em programas de rádio. Um deles, o maloqueiro “Charutinho” tinha umas tiradas sensacionais, tipo: “Pa escreve uma boa letra de samba, sentida, humana, a gente tem que se, em primeiro lugar, narfabeto. Só se for narfabeto pra escreve bem!”
Olhando uma fotografia de AB percebo certa semelhança dele com o impagável Mazzaropi, que levava multidões aos cinemas. Seus filmes, traziam um Brasil caboclo, sempre mostrado através de um viés ingênuo e habitado por figuras bizarras e hilárias como o seu Jeca Tatu. Não sei se os dois artistas se conheceram, mas certamente deviam se admirar mutuamente, pois a obra de ambos possui forte apelo popular.
Com os Demônios da Garoa, Adoniran ganhou espaço na TV, virou ícone da cidade de São Paulo. Lamentável é que o tempo tripudiou com o artista: Adoniran Barbosa morreu em 1982, aos 72 anos, pobre e quase esquecido. No momento de sua morte estavam presentes apenas sua mulher e mais duas amigas. AB passou os últimos anos de sua vida triste, sem entender o que tinha acontecido à sua cidade. Certo dia ele falou: “Até a década de 60, São Paulo ainda existia, depois procurei mas não achei São Paulo. O Brás, cadê o Brás? E o Bexiga, cadê? Mandaram-me procurar a Sé. Não achei. Só vejo carros e cimento armado.” Aí deve estar o tal “túmulo do samba”…
De qualquer forma, apesar dos pesares, a obra de AB continua firme e forte, espelhando uma São Paulo mítica, feita dos imigrantes, dos paus de araras, dos maloqueiros, dos corações despedaçados, dos fracos e fracassados, massacrados pela cidade inclemente. As canções de Adoniran, como crônicas saborosas e bem humoradas, nos transportam para esse universo encantado que os sentidos do artista souberam tão bem captar e reproduzir. E a passagem do tempo só vai fazer brilhar mais intensamente a originalíssima obra do grande Adoniran Barbosa!
Em tempo: termino com esta observação do amigo Hilário Rodrigues que conhece São Paulo muito bem:
“Como você diz, tem esse lado de São Paulo, inclemente com seus habitantes, verdade. Porém penso que Adoniram (minha visão) era um italiano no samba e sinto nas canções dele um toque assim meio que felliniano. Uma tristeza cômica, um jeito espontâneo, escrachado e sem malícia, de viver. Quando penso em mim, aos 67 anos, lembro-me de uma música dele, As Mariposas, acho. Num trecho ele se diz uma brasa – meio apagada mas que se soprar pega fogo de novo. Aí eu dou risada cá com meus botões…” (HR)
Revisão: Hilário Rodrigues
Colaboração midiática: @rodrigo_chaves_de_freitas
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