As Troianas, de Eurípedes
Teatro Grego Parte2

As Troianas, de Eurípedes

História do Teatro |  As Troianas, de Eurípedes

Texto: Cristina Tolentino
cristolenttino@gmail.com

 

As Troianas, de Eurípedes

As troianas

Grupo Bayu/Núcleo de Pesquisa Teatral
No texto abaixo relatamos o processo de montagem de As Troianas, realizada pelo Grupo Bayu, com direção de Cristina Tolentino, direção musical de Rafael Grimaldi, trilha sonora de Djalma Correia.

A montagem de As Troianas buscou estabelecer uma relação entre o Teatro Artaudiano e a Tragédia Grega.

No processo de estudo, pesquisa e direção da peça As Troianas, fui movida por esse inquietante, constante e inesgotável mergulho naquilo que propõe Artaud ao teatro e na busca do bios cênico do ator.

A Busca de uma Escritura Cênica, em que se possa estabelecer uma relação entre o teatro artaudiano – “o teatro existe para abrir abcessos coletivamente”- e a tragédia grega – “a catarse, a purgação”.

Criar uma cena viva. Primal. Uma confrontação mítica e ritualística com a obra, pois o que importa, como diz Artaud, não são os livros e sim as forças e as energias que emanam desses livros. Captação ancestral.

Irromper o tempo homogêneo, o tempo do cotidiano. Transcender o discursivo. Tempo mítico: a regeneração do tempo através do rito, do mito. No eterno retorno ao caos do princípio, a regeneração da vida. Ato originário da criação em devir permanente.

A repetição como um incessante ensaio dos mitos primordiais, que, embora aconteça no tempo, não carrega o peso do tempo, não registra a irreversabilidade do tempo. Passado, presente e futuro contraem – se num único momento do presente, onde a vida palpita em seu verdadeiro sentido. Artaud nos propõe um teatro que se revele capaz de extrair as forças que se agitam nos velho mitos.

Assim , ao adentrar o universo de As Troianas, buscamos resgatar esta grande obra de sua escravidão temporal e reencontrar a força e a vida da tragédia grega.

Eurípides, como Artaud, nunca encontrou um porto seguro na busca de explicação para o mistério da alma humana. Inquieto, até mesmo desesperado, estava sempre partindo para novas indagações e novas formas, razão porque suas peças são, até hoje, objeto de controvérsias.

Também como Artaud, Eurípides foi incompreendido no seu tempo – recolhido à paz de uma caverna, ele escrevia para outros tempos.

Eurípides preconiza em suas tragédias essa “crueldade vital”, da qual nos fala Artaud, em que a grande aventura humana já não consiste no desafio ao destino ou aos deuses, ou no morrer por sua pátria, mas na impossível fuga da condição humana.

“A inevitável marca do humano: a contradição, a irremediável convivência entre a grandeza e a fragilidade, entre a abnegação e a mesquinhez, a coragem e a covardia. Entre o projeto e o acidente. Entre o conhecer e o poder. A sabedoria e a paixão. Eis a grande e sublime tragédia.”

Essa condição conflitiva explode com toda a força nas grandes figuras femininas de Eurípides (Medéia, Fedra, Andrômaca, Hécuba, Cassandra, As Bacantes…).

A mulher, de certo modo, assume na tragédia de Eurípides o lugar dos antigos heróis. É através delas que ele expressa o crepúsculo da pólis, que se desenhava no horizonte, quando velhos ideais já não resistiam e, pouco a pouco, germinavam tendências irracionalistas na cultura ática. Eurípides desnuda esta irracionalidade do homem.

Ele viveu os problemas de seu tempo “com uma curiosidade insaciável pela grandeza frágil da alma humana, para além dos discursos e das hierarquias sociais (…) esteve preocupado mais com a significação dos afetos do que com a importância dos cargos e dos feitos políticos ou militares (…) soube, como ninguém, retratar toda a riqueza e o poder gerador e mortífero da paixão.

A paixão que faz os heróis, os mártires, os tiranos, os homicidas e que está por trás da religiosidade, do amor à pátria, da devoção ao cônjuge, da rigidez moral e da moralidade.

Eurípides enxergou, além dos discursos e dos atos, a verdadeira natureza dos homens. Para ele a norma social ou moral é apenas dique frágil a conter torrentes de desejo.”

A tragédia, em Eurípides, além de mostrar os dilemas dos heróis, passou a expor as dúvidas, as contradições e as incoerências dos homens.

Os personagens passaram a provocar controvérsia e ressentimento. Um perigo para a moralidade , que Sófocles deixava intocada, e para a religiosidade, que Ésquilo enaltecera. Como diz Santo Agostinho : “os homens amam a verdade quando ela se manifesta, mas não quando ela os manifesta. Então a verdade fica incômoda e quem a proclamou se torna objeto de ódio e abjeção.”

As Troianas

Eurípides levou ao palco episódios e discursos em que se revela toda a força das paixões humanas: o amor, o ciúme, o desejo, a vingança, o incesto, o adultério, a loucura.

Ele apontou “a inconsistência entre as ideias e a natureza das coisas, o paradoxo da grandeza impotente do ser humano, a convivência desordenada entre a generosidade e a mesquinhez” E a beleza da racionalidade ao lado da realidade inexorável do irracional, do acaso, do evento.

Por que a guerra de Tróia é retratada em As Troianas, a partir do olhar das mulheres? Foi a pergunta chave que nos conduziu a uma longa pesquisa das obras de Eurípides, onde, como já vimos, as entidades femininas ocupam lugar de destaque.

Como Artaud, para além da obra, fomos em busca da origem, a rede de significações e significantes do feminino: a mãe primeva; o universo mitológico das deusas; a terra e a mulher: útero, caverna, vida, morte, regeneração.

A figura da Grande Mãe perpassa por todas as culturas primitivas. Por todos os cantos da terra se encontram resíduos de uma época em que a fecundidade das mulheres constituía a base do sagrado. “Vede!

Aqui está nossa mãe terra. Vede! Ela nos presenteia com sua fertilidade. Sim, ela nos dá seu poder. Daí graças à mãe terra que aqui se assenta.” (tribo dos Índios Pawnees, Oklahoma )

Toda a nossa pesquisa perpassou em primeiro lugar pelo corpo e pela voz dos atores. Evocação das forças da natureza nas diversas “faces” do feminino:

Hécuba (Deméter, mãe de todos, terra- mater).
Andrômaca ( Hera, rainha e companheira no poder, lua – o visível e o oculto).
Cassandra (Perséfone, médium, mística e soberana dos mortos, semente – morte e ressurreição, inverno e primavera).
Helena (Afrodite, áurea deusa do amor, serpente – paixão, fogo vital da terra, oroboro).
Atena (Guerreira, lógica, rochedo – segurança).
Corifeu e Coro (Ártemis, amazona, xamanista, floresta – eixo de profundidade, raízes, fibras de uma raça).

Troianas

No corpo e na voz dos atores, as forças primordiais da natureza ( forças naturais ), o duplo dos personagens, iam, através de vários exercícios, tomando formas energéticas em estado potencial.

Formas energéticas desenhadas por todos os músculos, articulações e sons dos corpos dos atores, tornando – se matéria e poesia no espaço e trazendo à luz do dia “essa parte de verdade oculta, sob as formas, em seus encontros com o devir”, diz Artaud.

A escritura de uma partitura, com todas as suas nuances, onde modelamos nossas energias, sem permitir que se congelem nessa modelagem.

Assim, buscamos, a partir de dentro, aquela qualidade de energia necessária para a ação, aquela luminosidade, aquela transparência manifesta no ator, que parecem restituir a unidade do espiritual e corpóreo, do masculino e do feminino, do repouso e do movimento.

Sons e movimentos da terra, da lua, da semente, da serpente, da rocha, da floresta, foram ganhando forma e expressão no corpo e na voz dos personagens, fazendo brotar o seu bios – cênico, o seu corpo – em – vida.

Como Artaud, buscamos ligar o teatro à possibilidade de expressão pelas formas e de tudo que houver em matéria de gestos, ruídos, cores, plasticidade, devolvendo – o à sua primitiva destinação: recolocá -lo em seu aspecto religioso e metafísico, reconciliá – lo com o universo.

Dentro dessa multiplicidade de aspectos o teatro reconquista o seu poder de transtornar e de encantar e de ser uma contínua excitação para o espírito, onde as ações são “realizações talhadas em plena matéria, em plena vida, na plena realidade (…) em que pensamentos, soluções místicas, estados de espírito, são acionados, soerguidos, alcançados sem delongas e sem rodeios.”

Trilhando esse caminho, buscamos ainda transpor o texto clássico grego para o tempo que se chama hoje, para uma linguagem das nossas origens.

Assim, evocamos a força vital das Hécubas Africanas”, as grandes – mães de santo, que exiladas da sua terra, tornam – se as guardiãs de toda uma tradição cultural. Mulheres – raízes ( o morto – vivo, síntese ativa da morte e da vida). “Quando uma árvore é cortada, há esperança, ela reverdecerá e novos ramos brotarão, ainda que seu tronco fique como morto no pó.”

Diante da paixão e morte, a força e a potência dessas mulheres, quebram os obstáculos e reinstauram a esperança, a vontade de viver e amar apesar da dor e da morte.

Pesquisando a cultura Afro, fomos em vários “rituais de saída” no candomblé, estudamos os vários “Orixás” e optamos como figura feminina central, o orixá OXUM, e suas diversas facetas em ligação com as diversas faces das deusas gregas, já estudadas nas diversas personagens de As Troianas.

Após esse longo período de pesquisa, é que entramos em contato direto com o texto, enquanto enunciação, já tendo como base a face oculta, o não – manifestado, o invisível que veio se tornar manifestado e visível na partitura e escritura cênica de AS TROIANAS.

No cenário, a força dessa raiz, no interior da terra ventre.

Na iluminação, a geometria do labirinto e o círculo – símbolo do feminino, do eterno retorno.

Na música, o som e o ritmo dos tambores africanos – buscamos não uma melodia composta, mas vibrações de sons que pudessem “agir diretamente sobre a sensibilidade”, como diz Artaud. 

No figurino, não buscamos marcar uma época ou uma caracterização realista das roupas africanas, mas nos inspiramos em artes milenares da África, usando para sua feitura, palhas, cordas, lãs de carneiro, que nos remetem para essa dimensão de raiz, de raça.

Nos trenos do coro, buscamos encontrar cantatas e monodias, sons inaudíveis que se transformam em palavras e palavras que se transformam em sons inaudíveis.

Na linguagem falada, a vibração da voz, os silêncios, os gritos e ritmos, seu sentido encantatório e mágico, suas emanações sensíveis e não apenas o pronunciar palavras por seu sentido. Trabalhamos sempre dentro da concepção de que a voz é corpo e , sendo assim, ela deve ser a expressão concreta desse corpo.

Na linguagem corporal, a emoção orgânica. O cultivar a emoção no corpo, recarregando sua densidade voltaica, pois “toda emoção tem bases orgânicas”, diz Artaud. Saber quais pontos do corpo é preciso tocar vai possibilitar jogar o espectadores em transes mágicos. É essa espécie preciosa de ciência, que Artaud nos incita a encontrar.

A linguagem corporal foi composta por ações físicas , por uma minuciosa elaboração de partituras, buscando a emanação da energia e a sua condensação, o espectro plástico ,nunca acabado, as forças naturais da natureza no seu vir – a – ser que se tornaram forma, gesto e energia concreta no espaço e no tempo.

Em As Troianas, buscamos esta minúcia matemática, desenhada no corpo e na voz dos atores, em que, a partir deste chão seguro, eles possam emanar o sopro vital que dá vida aos seus personagens. É como a “pedra que se anima, porque foi tocada como se deve.”

Essa tragédia foi trabalhada a partir destas metáfora, marcando a dialética material da vida e da morte – a morte que sai da vida e a vida que sai da morte.

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