Teatro Contemporâneo | Antonin Artaud, parte 1
Texto: Cristina Tolentino
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Artaud, biografia
Antonin Artaud nasceu em Marselha, no dia 4 de setembro de 1896, e faleceu em Paris, no dia 4 de março de 1948. Foi um poeta, ator, roteirista e diretor de teatro francês.
Em 1937, Antonin Artaud, devido a um incidente, é tido como louco. Internado em vários manicômios franceses, cujos tratamentos são hoje duvidosos. Ele é transferido após seis anos para o hospital psiquiátrico de Rodez, onde permanece ainda três anos.
Em Rodez, Artaud estabelece com o Dr. Ferdière, médico-responsável do manicômio, uma intensa correspondência. Uma relação ambígua se estabelece entre os dois: o médico reconhece o valor do poeta e o incentiva a retomar a atividade literária. Mas, julgando a poesia e o comportamento de seu paciente muito delirante, ele o submete a tratamentos de eletrochoque que prejudicam sua memória, seu corpo e seu pensamento.
Existe aqui um afrontamento entre dois mundos: o da medicina e razão social, e o do poeta cuja razão ultrapassa a lógica normal do “homem saudável”.
As cartas escritas de Rodez são para Artaud um recurso para não perder sua lucidez. Elas revelam um homem em terrível estado de sofrimento, nos falando de sua dor através de uma escritura mais íntima e mais espontânea. São os diálogos de um desesperado com seu médico e através dele com toda a sociedade.
“Não quero que ninguém ignore meus gritos de dor e quero que eles sejam ouvidos”.
Para Artaud, o teatro é o lugar privilegiado de uma germinação de formas que refazem o ato criador, formas capazes de dirigir ou derivar forças.
Em 1935 Artaud conclui o “Teatro e seu Duplo” (Le Théâtre et son Double), um dos livros mais influentes do teatro deste século. Na sua obra ele expõe o grito, a respiração e o corpo do homem como lugar primordial do ato teatral. Denuncia o teatro digestivo e rejeita a supremacia da palavra. Esse era o Teatro da Crueldade de Artaud, onde não haveria nenhuma distância entre ator e plateia. Todos seriam atores e todos fariam parte do processo, ao mesmo tempo.
Em Rodez, além de suas cartas (lettres au docteur Ferdière) ele elabora uma prática vocal, apurada dia a dia, associada à manifestações mágicas. A voz bate, cava, espeta, treme; a palavra toma uma dimensão material; ela é gesto e ato.
Artaud volta a Paris em 1946, onde dois anos depois é encontrado morto em seu quarto no hospício do bairro de Ivry-sur-Seine. Neste período, além de uma importante produção literária, ele desenha, prepara conferências e realiza a emissão radiofônica.
“Para acabar com o juízo de Deus” (Pour en finir avec le jugement de dieu), onde sua vontade expressiva se alia a um formalismo cuidadoso.
Se nos anos 30 o teatro para Artaud é “o lugar onde se refaz a vida”, depois de Rodez ele é essencialmente o lugar onde se refaz o corpo. O “corpo sem órgãos” é o nome deste corpo refeito e reorganizado que uma vez libertado de seus automatismos se abre para “dançar ao inverso”.
“A questão que se coloca é de permitir que o teatro reencontre sua verdadeira linguagem, linguagem espacial, linguagem de gestos, de atitudes, de expressões e de mímica, linguagem de gritos e onomatopeias, linguagem sonora, onde todos os elementos objetivos se transformam em sinais, sejam visuais, sejam sonoros, mas que terão tanta importância intelectual e de significados sensíveis quanto a linguagem de palavras.”
O seu trabalho ainda inclui, ensaios e roteiros de cinema, pintura e literatura, diversas peças de teatro, inclusive uma ópera, notas e manifestos polêmicos sobre teatro, ensaios sobre o ritual do cacto mexicano peyote entre os índios Tarahumara (Les Tarahumaras), aparições como ator em dois grandes filmes e outros menores.
Artaud escreveu: “Não se trata de assassinar o público com preocupações cósmicas transcendentes. O fato de existirem chaves profundas do pensamento e da ação segundo as quais todo espetáculo é lido é coisa que não diz respeito ao espectador em geral, que não se interessa por isso.
Mas de todo o modo é preciso que essas chaves estejam aí, e isso nos diz respeito” – em TEATRO E SEU DUPLO.
Teatro: Um Ato Total
Circunavegar esse mar mediterrâneo do universo artaudiano veio para mim como um duplo desafio: por um lado, elucidar a concretude da proposta do Teatro e seu Duplo, de Antonin Artaud, em relação à linguagem total do teatro.
Por outro lado, resgatar a obra de Artaud como o trajeto de um visionário que não teve medo de se adentrar nos recônditos mais profundos da vida (da sua e da realidade de sua época) e, de maneira particular, do teatro, sendo ele mesmo homem teatro, para ressurgir em OBRA VIVA, legando-nos um marco para a Estética Teatral Contemporânea. Já dizia Barrault: “De longe, a coisa mais importante que se escreveu acerca do teatro no século XX”.
É necessário considerar que não pretendo transformar a obra de Artaud num receituário para a arte cênica. O legado que ele nos deixa não é uma geografia que pode ser colonizada, mas pontos de partida, indicações de caminhos, em que ideias suscitam ideias, em que a obra transcende a si mesma.
Esse homem-teatro é, em si, uma obra de arte e, portanto, estará sempre fora de alcance, nunca poderá ser esgotado. Como diz o próprio Artaud: “A verdadeira beleza nunca nos atinge diretamente.
E é assim que o pôr- do- sol é belo por tudo aquilo que nos faz perder” (…) ideias claras são ideias mortas e acabadas.” Assim, pretendo evidenciar algumas sinalizações que Artaud nos apresenta, a partir de suas críticas à cultura, ao teatro de sua época e de suas epifanias para o teatro, enquanto ato total: “uma projeção escaldante de tudo aquilo que pode ser retirado de um gesto, uma palavra, um som, uma música e da combinação entre eles.”
Este artigo é um resumo da minha dissertação de mestrado, na USP, São Paulo, cujo tema foi “Em busca de uma Escritura Cênica a partir de Artaud”.
Para uma melhor compreensão da obra de Artaud e da sua proposta de teatro como ato total, o texto é dividido em três partes: Cultura – Vontade de Potência; A Necessidade Implacável da Criação; A Nova Linguagem do Teatro.
O meu encontro com Artaud veio confirmar a trajetória que eu já vinha percorrendo, na buscar de recuperar o verdadeiro sentido do teatro enquanto um ritual que exige de seus participantes rigor, disciplina, determinação, coragem, generosidade.
Um ritual que é ação e que acontece no tempo e no espaço da cena e que só pode viver em cena, onde passado, presente e futuro se unem naquele instante preciso do ato total. Um teatro que saiba nomear e dirigir as sombras, trazendo à luz do dia verdades que, de outra forma, permaneceriam ocultas.
Um teatro que fale a sua linguagem concreta, linguagem física, linguagem materializada no corpo e na voz dos atores e em tudo o que acontece em cena, evocando um universo, onde tudo assume um sentido, um mistério, uma alma.
É esse o caminho que percorro na minha pesquisa e investigação teatral. Caminho que percorro por uma necessidade vital e que recebi de herança ancestral, legada por tantos outros sonhadores e fundadores de mundos para além de mundos conhecidos. E que esse caminho possa, por sua vez, ser herança para tantos outros que estão e virão.
“E que com o hieróglifo de uma respiração, eu possa encontrar uma ideia do teatro sagrado”. ( Artaud )