Teatro Contemporâneo | Antonin Artaud, parte 3
Texto: Cristina Tolentino
cristolenttino@gmail.com
A necessidade implacável da criação
A necessidade implacável da criação ou necessidade implacável de afirmação da vida. Ninguém mais do que Artaud lutou incansavelmente contra a imensa pressão da morte. Suas dificuldades se transformaram em desafios, suas angústias e dores em uma busca incessante, seu aprisionamento em procura de uma saída.
Em sua dificuldade de se expressar, Artaud deixa uma obra que vem revolucionar a cultura e a arte de seu tempo, só valorizada anos mais tarde; em suas angústias e dores, Artaud liberta suas energias latentes e cria em função dessa revolta; em seu aprisionamento, Artaud luta desesperadamente por uma transformação de todas as estruturas da vida.
Uma vida espontânea e uma cultura fascinante, movida por uma força de unificação que se reproduziria a todos os níveis e a todos os instantes.
É com essa mesma força de afirmação da vida inerente em Artaud, que ele vai construir as bases materiais de seu teatro, ou seja, o teatro e seus duplos: a peste, a alquimia, a crueldade.
A Peste
O teatro para Artaud deve ter a força de uma epidemia; deve ser uma combustão que vai trazer à tona, a essência do ser; deve ser um ato de entrega total à essa necessidade inelutável de criação contínua.
Uma verdadeira peça de teatro perturba o repouso dos sentidos e impõe às coletividades reunidas, à sua volta, uma atitude heróica e difícil. Artaud deseja que o teatro se abata entre uma multidão de espectadores com o mesmo e pavoroso horror da peste bubônica, a peste negra da Idade Média.
Um teatro vivido a partir do epidêmico, da peste epidêmica. Diante da morte (de uma destruição total) não tenho mais voz, mais vez, mais estação, mais porto seguro. A febre interior aponta que estou em combustão, estou expelindo como um vulcão, como uma tempestade orgânica, como lava, erupção.
Uma espécie de exorcismo, de purgação. O organismo descarrega sua podridão – ou você vive ou você morre – não há meio termo. Uma crise completa após cuja passagem resta apenas a morte ou a purificação total. “Também o teatro é um mal porque é o equilíbrio supremo que só se pode conseguir através da destruição. Ele requer, do espírito, a participação num delírio que intensifica suas energias”.
O palco, lugar do mal absoluto, mas também o crivo da vida. Anárquico e epidêmico, produz formas, ações, sentimentos e ideias num confronto originário de vida e morte. Reabre o espaço virtual das formas e dos símbolos, alimentando e expandindo os conflitos, onde a realidade não se apaga, mas também não se desliga do fluxo produtor da vida.
O teatro é como a peste, não só por atuar sobre a coletividade e por transtorná-la, mas porque existe no teatro, como na peste, algo de vitorioso e de vingativo ao mesmo tempo: o homem rebelado contra a fatalidade e que, em lugar de padecê-la, se insurge contra ela e cria em função dessa revolta. “
A ação do teatro como a da peste é benfazeja, pois levando os homens a se verem como são, faz cair a máscara, põe a descoberto a mentira, a tibieza, a baixeza, a hipocrisia; a ação do teatro sacode a inércia asfixiante da matéria; e revelando para as coletividades seu próprio poder obscuro, sua força oculta, ela as convida a assumir uma atitude heroica e superior, que, sem isso, jamais assumiriam”.(…)
“o teatro existe para furar abcessos coletivamente, pois vamos ao teatro para reencontrarmos aquilo que temos, não propriamente de melhor, mas de mais raro e mais crivado”. Artaud nos fala que esse teatro possibilitará a ressurreição de uma força espiritual que cresce em intensidade, em densidade e se afirma à medida que se propaga.
Dele sairemos não como espectadores passivos que se limitam a um olhar artístico sobre as formas, mas como supliciados que se queimam e que fazem signos em suas fogueiras. Ou seja, a função do teatro é perturbar o espectador para que ele, saindo do marasmo a que foi induzido pela cultura (ocidental), possa reencontrar sua essência profunda e sua real capacidade de criação.
A Crueldade
Contra um teatro de divertimento, de entretenimento “digestivo”, Artaud nos propõe um teatro que busque alcançar as regiões mais profundas do indivíduo, agindo sobre ele, como as vibrações de uma música capaz de entorpecer a serpente.
“Ela se dirige diretamente aos órgãos da sensibilidade nervosa, assim como os pontos de sensibilização da medicina chinesa incidem sobre os órgãos sensíveis e as funções diretrizes do corpo humano” (…) “um ambiente de luzes e de ruídos criados por dispositivos especiais, uma palavra que escapa no momento preciso, pode enlouquecer um homem, deixá-lo louco.
Tudo isso para voltar à idéia de que o teatro atua, basta saber manejá-lo”.(…) “um teatro onde as formas, os sentimentos, as palavras compõem a imagem de uma espécie de turbilhão vivo e sintético, no meio do qual o espetáculo toma o aspecto de uma verdadeira transmutação”.
Foi a revelação das forças misteriosas que comandam o universo, através de seus estranhos movimentos e roupagem hierática, a música miraculosa que acompanha suas danças, a presença de força cósmica em seus gritos inarticulados, que fizeram da descoberta dos atores-bailarinos balineses um acontecimento decisivo na vida de Artaud e o levaram a compreender a verdadeira natureza do teatro como instrumento potencial para a redenção da humanidade…”não sou um daqueles que julgam necessária a mudança da civilização para que o teatro mude: creio, porém, que o teatro, utilizado no sentido mais alto e mais difícil de todos, tem o poder de influenciar a natureza e o desenvolvimento das coisas”.
Na concepção de Artaud, esse teatro, cujas forças cósmicas, manifestadas por meios corporais que alcançam e tocam as energias físicas não-verbais e subconscientes das massas, é o que ele intitula Teatro da Crueldade.
Artaud deixa claro que a expressão Teatro da Crueldade não se refere a sadismo, a sangue, pelo menos de modo exclusivo. Não é um culto ao terror. O teatro da Crueldade é, antes de tudo, extremamente violento contra nós mesmos. Trabalha o auto – desnudamento, nos transforma, exige que nós nos reformulemos, “jorra sangue metaforicamente”, diz Vera Lúcia Felício.
E no plano de representação, “não se trata da crueldade que infligimos um ao outro, cortando mutuamente nossos corpos, serrando nossas anatomias pessoais, ou como imperadores assírios, mandando uns aos outros, pelo correio, pacotes de orelhas humanas, narizes ou narinas bem cortadas, mas daquela crueldade muito mais terrível e necessária que as coisas podem exercer sobre nós.
Não somos livres. Os céus ainda podem cair sobre nossas cabeças. E o teatro existe, em primeiro lugar, para nos ensinar isso”.
Como Artaud, não podemos negar que a vida, naquilo que ela tem de devoradora, de implacável, se identifica com a crueldade. E isso não somente no plano físico e visível, onde a crueldade está por todo lado, mas também e, principalmente, no plano invisível e cósmico, onde o simples fato de existir, com a imensa soma de sofrimentos que isto supõe, aparece como uma crueldade…
“uso a palavra crueldade no sentido de apetite de vida, rigor cósmico e necessidade implacável, no sentido de turbilhão de vida que devora as trevas, no sentido dessa dor de necessidade inelutável, fora da qual a vida não saberia exercitar-se; o bem é desejado, ele é resultado de um ato, o mal é permanente. Quando cria, o Deus oculto obedece à necessidade cruel da criação que se impõe a si mesma, e assim ele não pode deixar de criar, portanto não pode deixar de admitir, no centro do turbilhão voluntário do bem, um núcleo do mal, cada vez mais reduzido.
E o teatro, no sentido de criação contínua, de ação mágica inteira, obedece a essa necessidade. Uma peça onde não exista essa vontade, esse apetite de vida cego, capaz de passar por cima de tudo, visível em cada gesto e em cada ato, e do lado transcendente da ação, será uma peça inútil e fracassada”.
A necessidade implacável da criação
Assim, o teatro, na medida em que pára de ser uma arte puramente digestiva e de divertimento fácil, em que volta a ser ativo e reencontra os poderes da ação direta sobre a sensibilidade e, através da sensibilidade, sobre o espírito, redescobrindo sua ligação com as forças, retoma “seu caráter perigoso e mágico, e se identifica com essa espécie de crueldade vital que é a base da crueldade” (…) “onde a criação e a própria vida só se definem por uma espécie de rigor, portanto, de uma crueldade básica que leva as coisas a seu fim inelutável, seja qual for o preço”.
Artaud diz “crueldade”, como poderia ter dito “vida” ou “necessidade”, porque quer indicar que o teatro é ato e emanação eterna, que nele nada existe de fixo, identificando-o a um ato verdadeiro e que, portanto, é vivo, é mágico. Uma prática que se dá no presente, no imediato – o ato, e que deve ter a força de um acontecimento. “Vida- Manifestação: Teatro – manifestação e crueldade – rigor, pois intensidade, pois presença de vida.”
E esta “presença de vida”, diz-nos Vera Lúcia Felício, “liga-se a catástrofes como tremores de terra, erupção de vulcões, de uma forma denominada de “Sublime”, no sentido empregado por Artaud, quando diz que existe Sublime e Poesia no crime, na natureza de certos crimes de causas indescritíveis.
Esta energia cósmica ou esta força encontrará sua expressão integral no teatro, de um modo marcante, nítido e poético, isto é, sob a forma de uma poesia mágica.” A palpitação inata da vida, que colocará em movimento as grandes preocupações e as grandes paixões essenciais, as quais, “o teatro moderno cobriu sob o verniz do homem falsamente civilizado”.
Novamente aqui, o Teatro de Bali vem ser a concretização dessa linguagem palpitante da vida: “em Bali, os temas provêm, parece, das junções primitivas da Natureza que um Espírito duplo favoreceu. O que ele agita é o Manifestado. É uma espécie de Física primeira, da qual o Espírito nunca se afastou” (…) “suas realizações são talhadas em plena matéria, em plena vida, na plena realidade.
Há nelas algo do cerimonial de um rito religioso, no sentido que extirpam do espírito de quem as observa toda ideia de simulação, de imitação barata da realidade”. Em Bali, uma realidade fabulosa e obscura é acionada, soerguida, alcançada sem delongas e sem rodeios. Tudo isso, diz Artaud, “parece um exorcismo para fazer nossos demônios AFLUÍREM”.
Alquimia O teatro, assim como a alquimia, nos permite reascender ao sublime, mas com drama, ou seja, antes de chegar à operação teatral de fazer ouro ou à operação de fazer ouro teatral, é necessário passar pelo embate de forças lançadas umas contra as outras, até chegar à decantação bruta, à pureza absoluta, concebida como “uma espécie de nota limite, apanhada em pleno vôo e que seria como a parte orgânica de uma indescritível vibração”.
No teatro não haverá um material pronto, pré-parado, mas se desenvolverá e se construirá como uma matéria em ebulição na direção de um possível: “decantar e operar a transfusão da matéria, evocar a transfusão ardente e decisiva da matéria pelo espírito, fundindo todas as aparências em uma expressão única que devia ser semelhante ao ouro espiritualizado”.
Pelo duplo, o teatro quer tornar sensível essa unidade múltipla da vida, onde será possível juntar a divisão, a contradição, o perigo, fazendo do teatro a “gênese da criação “- extraindo ordem da brutalidade ciclônica da natureza: no eterno retorno ao caos do princípio, a regeneração da vida, do mundo, do cosmo. “O verdadeiro teatro nasce, assim como a poesia, mas por outras vias, de uma anarquia que se organiza, após lutas filosóficas que são o lado apaixonado dessas primitivas unificações”.
O Teatro da Crueldade e a Alquimia, ambos são artes virtuais…”assim como a alquimia, com seus símbolos, é como o Duplo espiritual de uma operação real, também o teatro deve ser considerado como o Duplo não desta realidade cotidiana e direta, da qual ele, aos poucos, se reduziu a ser uma cópia inerte”. Artaud, ao dizer que “o teatro é um duplo da vida e a vida é um duplo do verdadeiro teatro”, não está tratando da vida reconhecida pelo exterior dos fatos, mas duma “espécie de frágil e turbulento núcleo no qual as formas não tocam”.
Assim, como diz Artaud, “o público acreditará nos sonhos do teatro com a condição de considerá-los, de fato, como sonhos e não como decalque da realidade; com a condição de que os sonhos permitam liberar no público essa liberdade mágica do sonho, que ele só pode reconhecer enquanto marcado pelo terror e pela crueldade.”
O teatro que Artaud propõe nada tem a ver com teatro social que muda com as épocas, mas um teatro que atue, um teatro que não se detém no aspecto individual da vida, mas que tem como verdadeiro objetivo o criar mitos, possibilitando traduzir a vida sob seu aspecto universal e extraindo dessa vida imagens nas quais gostaríamos de nos reconhecer.
Como na alquimia, a cena no teatro (o ouro) não se encontra pronta, ela vai sendo construída no dinamismo da ação, extraindo as forças latentes, depurando-as até encontrar os gestos e sons primordiais, essenciais, a pedra filosofal, a síntese.
Nesta cena não haverá desperdício, a exatidão com a qual cada ação será desenhada no espaço, a precisão com a qual cada traço será definido, uma série de pontos de partida e de chegada fixados exatamente de impulsos e contra-impulsos, os quais, permitirão, que a massa da vida se faça revelação.Um teatro que condensa, destila a essência mesma da realidade, portanto, um teatro de pesquisa…uma pesquisa dos sentidos eficazes do teatro.
Eficazes naquele que realiza e eficazes naquele que olha, o espectador. O teatro balinês é, para Artaud, esse sentido eficaz, onde poesia e matemática, magia e ciência se tornam uma mesma realidade, se encontram.
A peste enquanto possibilidade de redenção; a crueldade enquanto rigor cósmico, necessidade inelutável da criação; a alquimia enquanto purificação da matéria, vão possibilitar, segundo Artaud, a construção de um novo sujeito, inteiro, essencial. O verdadeiro objetivo do teatro não é imitar a vida, mas refazer a vida.