Teatro Contemporâneo | Antonin Artaud, parte 4
Texto: Cristina Tolentino
cristolenttino@gmail.com
A nova linguagem do Teatro
O Marat interpretado por Artaud no Napoleão de Gance é bastante conhecido.
Repare na mobilidade do rosto de Artaud e da gama de suas expressões.
O corpo e a voz no tempo e no espaço de representação
Refazer a vida. Eis o verdadeiro objetivo do teatro. A vida, não nos fatos e acontecimentos exteriores, mas naquilo que ela tem de mais profundo e de mais sagrado. Assim, Artaud quer arrancar o teatro literário de seu torpor, recriar algo vivo – um acontecimento: “convida-se essa linguagem a dirigir-se não apenas ao espírito, mas também aos sentidos, a atingir regiões ainda mais ricas e fecundas da sensibilidade em pleno movimento”.
A nova linguagem do teatro: um instrumento superior de comunicação para além do uso discursivo de conceitos, linguagem e palavras, estabelecendo um vínculo pelo qual a totalidade da emoção poderá fluir livremente de corpo a corpo, de ator a espectador.
Linguagem da poesia. Utilizar aspectos concretos da linguagem que se comunicam diretamente ao corpo, como a qualidade musical das palavras, a natureza sensual dos sons de que são feitas, a qualidade rítmica do poema que ativa os ritmos próprios do corpo: o latejar do sangue e a enorme multidão de associações não-verbais inerentes à linguagem e ativadas pelas palavras.
As inumeráveis sensações corpóreas sentidas continuamente: odores que nos invadem e que formam um permanente fundo de nossas vidas, a pressão das roupas que usamos contra a pele, a multidão de sons que nos cercam ou que andam ao sabor da nossa imaginação, o gosto amargo e doce dos alimentos e da própria vida, alegria e medo, a beleza de um pôr do sol, amor e ódio, o ritmo do pulsar do coração, a respiração, a tensão ou relaxamento dos músculos, o cheio ou o vazio dos nossos estômagos…
Artaud argumenta que esses elementos não verbais da consciência têm importância fundamental para um poeta. Eles estão intimamente ligados à própria matéria e substância da poesia: a emoção humana.
Emoção que pode ser evocada através das palavras, mas não é em si mesma verbal. Todas essas emoções são experimentadas como sensações corpóreas: “toda emoção tem bases orgânicas. É cultivando sua emoção em seu corpo que o ator recarrega sua densidade voltaica. Saber, antecipadamente, quais pontos do corpo é preciso tocar significa jogar o espectador em transes mágicos. É dessa espécie preciosa de ciência que a poesia, no teatro, há muito se desacostumou.”
Se olharmos o projeto corpo, ainda carregamos a má digestão de Descartes: “penso, logo existo”- separa o pensamento da existência, o corpo da mente, sendo que o lugar do pensamento é no corpo inteiro.
Carregamos o preconceito de que aquilo que o corpo experimenta fica só no corpo, separamos cabeça e corpo, razão e emoção e esquecemos que o que sentimos é comandado pelo sistema nervoso central, pelos neurônios. O modo como o corpo organiza as informações é como se estivesse organizando o pensamento.
O corpo é o lugar mais adequado para se perceber que não existe diferença entre natureza e cultura… “o homem é o único organismo vivo que tem uma noção consciente e dirigida das coisas e que pode, por sua vontade, modificá-las.
Resta apenas um lugar no mundo, um só, onde podemos alcançar esse organismo e dele nos servir de uma maneira ativa: é o teatro, desde que renunciemos à nossa concepção européia e consideremos o teatro como o lugar onde se manifesta uma vida consciente e excitada”. E o palco, o lugar onde se poderá reconstituir a união do pensamento, do gesto, do ato.
Um teatro que fala, através de todos os sentidos, ao homem total. Uma metafísica que começa na pele, indo do gesto ao pensamento, passando pelos órgãos, como se o corpo fosse o ideograma ontológico crucial (sinal do ser humano crucial).
O que pode um corpo? Essa pergunta não é pela essência, mas pelas potencialidades de produção. É que, no teatro, o corpo não está dado e constituído. Todo o trabalho do ator repousa sobre uma hipótese que, seja ou não correta, é sempre verificável: “a de que a alma é fisiologicamente um novelo de vibrações.
É possível ver esse espectro de alma como intoxicado pelos gritos que ela propaga, se não pelo que corresponderia aos mantras hindus, essas consonâncias, essas acentuações misteriosas, onde o avesso material da alma, acuado até em seus mais ocultos antros, vem contar seus segredos à luz do dia”.
Isto permite ao ator tomar seu corpo como espaço material, onde essas forças se desdobram e se produzem; e cabe a ele saber captar e irradiar as vibrações, aprender a refazer seus trajetos e pontos de confluência e dispersão, produzindo conflito, expandindo-o, levando-o às últimas conseqüências, para criar um espectro plástico e infinito, consumindo e criando formas e imagens; e isso nada tem a ver com delírio descontrolado.
Entrar em transe através de métodos calculados. É o que Artaud observa diante dos dançarinos balineses: “tudo, nesse teatro, é de fato calculado com uma minúcia adorável e matemática, que exige rigor, aplicação, determinação”. O transe não se apodera do ator, dotado de um estatuto rigoroso e de um método científico. A técnica como algo que garante qualidade, rigor, precisão. Exige severidade, constância e disciplina na formação do ator.
Os atores-dançarinos de Bali começam a sua formação desde criança, assim como os atores-dançarinos do Kathakali, em Kerala, na Índia. Existe toda uma codificação do corpo em gestos e movimentos, existe um conhecimento científico das possibilidades de expressão do corpo, não com o objetivo de alcançar um virtuosismo técnico, mas, sim, de tornar o corpo um receptáculo dos movimentos íntimos da alma humana, fazendo com que esse corpo adquira uma temperatura interior que torne incandescentes as ações do ator, possibilitando-o locomover-se, construir-se e se tornar uma presença ativa em cena.
Em Bali o drama não evolui entre sentimentos, mas entre estados de alma, entre estados de espírito, “ossificados e reduzidos a gestos – esquemas” (…) “um certo número de convenções bem aprendidas e, sobretudo, magistralmente aplicadas. A utilização por esses atores de uma quantidade precisa de gestos seguros, de mímicas experimentadas que têm sua razão de ser mas, acima de tudo, na envelopagem espiritual, no estudo profundo e matizado que orientou a elaboração desses jogos de expressão, desses signos eficazes e cuja eficácia parece não ter-se esgotado nestes milênios todos”.
“O teatro é o estado, o lugar, o ponto, onde se aprende a anatomia humana e, através dela, se cura e rege a vida”. Para Artaud, o verdadeiro teatro é o exercício de um ato perigoso e terrível, porque “visa à total transformação orgânica e física do corpo humano”.
Um outro corpo é construído, diferente do corpo cotidiano, um corpo “em vida”, um corpo “extra – cotidiano”, dilatado, energético… “o teatro não é essa parada cênica onde se desenvolve virtual e simbolicamente um mito, mas esse cadinho de fogo e de verdadeira carne onde, anatomicamente, pela trituração de ossos, de membros e de sílabas os corpos se refundem e se apresenta fisicamente e ao natural o ato mítico de fazer um corpo.”
Assim, para retomar o contato com a verdadeira base metafísica da existência humana, o corpo é que deve ser redespertado e reativado, ou, em outras palavras, para alcançar a esfera metafísica é preciso que nos tornemos mais físicos e “o teatro é o dado físico acessível da magia, propondo ao público uma linguagem poética, mítica, diferente do teatro ocidental europeu, psicologista”. Esse estado de vida poética, proposta ao espectador, pode conduzi-lo a precipícios, mas, mesmo assim, é preferível à vida psicológica simples, sob a qual, segundo Artaud, “sufoca o teatro de sua época”.
O teatro ocidental se tornou uma arte decorativa e inútil. Precisamos de uma ação verdadeira, de um teatro de ação, espetáculo de tentação onde o entendimento tem tudo a perder e o espírito tem tudo a ganhar, um teatro que nos desperte, nervos e coração. É aí que o teatro deve se reencontrar. O palco é um lugar onde se está em perigo constante. Ali, a cada noite se passa algo único, que leva a ganhar corporalmente alguma coisa, tanto a quem atua quanto a quem assiste. O teatro é uma ilusão que põe em movimento a ilusão da realidade. Por isso ele é a produção do perigo, pois “uma outra linguagem, a das paixões nasceu”.
Para Artaud, o corpo é o espaço energético que produz e movimenta as ações e as paixões, na e pela respiração, lançando a vida em sua realidade insuspeita. “Alcançar as paixões através de suas forças ao invés de considerá-las como puras abstrações, confere ao ator um domínio que o iguala a um verdadeiro curandeiro”.
É do mundo afetivo que o ator deve tomar consciência: dos músculos roçados pela afetividade, do jogo entre as respirações, desencadeando essa afetividade potencial, aumentando a densidade interior e o volume de seu sentimento. O ator é “como um atleta do coração”. E para servir-se de sua afetividade, é preciso ver o ser humano como um duplo; como um espectro eterno, um espectro plástico e nunca acabado.
E, como todos os espectros, esse duplo tem uma memória… a “memória do coração”, que é durável. É com o coração que o ator pensa. Esse mundo afetivo comporta um sentido material. É preciso acreditar em uma “materialidade fluídica da alma. Saber que uma paixão é matéria, que ela está sujeita às flutuações plásticas da matéria, dá sobre as paixões uma ascendência que amplia nossa soberania”.
A nova linguagem do Teatro, parte dois
Artaud fala da importância de se conhecer o “segredo do tempo das paixões”, uma espécie de “tempo musical” que rege seu batimento harmônico. Ele diz que esse tempo pode ser encontrado na respiração, e que a produção da respiração vai provocar, no organismo que trabalha, o nascimento de uma qualidade correspondente de esforço.
A respiração “reacende a vida”, “atiça-a em sua substância”, acompanha o sentimento, como também entra no sentimento pela respiração. Mas sob uma condição, “a de saber discriminar, entre as respirações, aquela que convém a esse sentimento”.
Neste sentido, podemos perceber que Artaud não propõe ao ator o se deixar ficar emocionado, o se deixar ser levado e dominado pela emoção.
Esse sentimento que deve ser acionado pelo ator em momentos precisos da sua ação física, ele o alcança através do desenvolvimento da sua sensibilidade. O ator deve ser sensível e não emocional.
A emoção gera tensão e angústia, impossibilitando ao ator construir-se livre e organicamente em cena. A sensibilidade abre os canais de percepção do ator, possibilitando-lhe ser a obra e, ao mesmo tempo, ser o escultor dessa obra; ser a partitura musical e, ao mesmo tempo, ser o seu compositor.
Para refazer a cadeia, a antiga cadeia na qual o espectador se identifique com o espetáculo, é preciso permitir que esse espectador se identifique com o espetáculo, respiração a respiração e tempo a tempo.
Mas Artaud nos adverte que não basta que essa magia do espetáculo acorrente o espectador, pois ela só o aprisionará realmente se souber fazê-lo. Por isso ele dá um basta às magias ocasionais, a uma poesia que não tem ciência a sustentá-la: “no teatro, daqui para frente, poesia e ciência devem identificar-se”.
Artaud quer encontrar uma nova linguagem a partir da sensibilidade, mas, ao mesmo tempo, não identifica a nova linguagem ao arbitrário, pelo contrário, “o Teatro da Crueldade é rigoroso e antipsicológico” (…) “sem matar a espontaneidade própria a cada ator, o tom da voz, a gesticulação, os movimentos de conjunto serão todos calculados a fim de obedecer a um ritmo onde tudo toma seu lugar próprio”, como uma partitura musical.
Assim, o corpo, como uma escritura hieroglífica de um teatro sagrado, impõe as formas e a imagem de sua sensibilidade, irradiando certas forças que têm seu trajeto material de órgãos e nos órgãos, onde o avesso material da alma vem contar seus segredos à luz do dia. O espetáculo será, para o espírito, um meio de reconhecimento, de vertigem, de revelação.
Artaud quer abandonar o hábito de um teatro falado, onde a clareza e a lógica constrangem a sensibilidade. Ele acrescenta que não se trata de suprimir a palavra, mas dela “se servir em um sentido mágico esquecido ou desconhecido.
Trata-se, sobretudo, de suprimir um certo lado puramente psicológico e naturalista do teatro e de permitir à poesia e à imaginação retomar seus direitos” (…) “essa famosa poesia, que o público menospreza, não sabendo o que ela é, e que ela ainda é a única coisa que o toca sem que ele possa dizer como isso acontece, essa poesia está na base de toda ação dramática”. Uma poesia em ação, uma poesia realizada, concreta, que remete o teatro a seu verdadeiro plano, aquele de base metafísica, ou seja, universal.
Podemos perceber, então, que a poesia à qual Artaud deseja dedicar-se transcende o puramente verbal e, tanto o instrumento a ser utilizado na transmissão dessa espécie de poesia, quanto o seu receptor, é de fato o CORPO HUMANO: “a gramática dessa nova linguagem deve ser encontrada.
O gesto é a sua matéria e sua cabeça e, se quiserem, seu alfa e ômega. Ela parte da NECESSIDADE da fala mais do que da fala já formada. Encontrando na palavra um impasse, ela volta ao gesto de modo espontâneo. De passagem, essa linguagem roça em algumas leis da expressão material humana. Mergulha na necessidade. Refaz poeticamente o trajeto que levou à criação da linguagem”.
Chama a matéria ao nascimento, à vida. É diretamente atuante…como diz Peter Brook: ” palavras destinadas a sair, sob formas de sons, dos lábios de gente viva, com um tanto de entonação, de pausa, de ritmo, e gesto” (…) “uma palavra não começa sendo uma palavra – é o produto final iniciado como um impulso, estimulado por atitude e comportamento, por sua vez ditados pela necessidade de expressão”
Uma linguagem que, na sua origem, nasce dessa necessidade de comunicar sua paixão ao outro. Nasce do afeto e não do racional. “Lá onde os outros propõem obra, eu mostro o meu espírito”, diz Artaud. Uma linguagem de fogo, acendedora de incêndios que, através de gritos, onomatopeias, signos, atitudes e lentas, abundantes e apaixonadas modulações nervosas, utilizada em todos os planos do espaço, faz esse espaço falar… ” longe de restringir as possibilidades do teatro e da linguagem, sob o pretexto de que não encenarei peças escritas, eu amplio a linguagem da cena, multiplico suas possibilidades.”
Artaud nos fala que essa linguagem falada não será fixada a priori, mas determinada em cena; será feita em cena, criada em cena, em correlação com a outra linguagem, as atitudes, signos, movimentos e objetos, onde a palavra surgirá como uma necessidade. Só assim, diz Artaud, “o teatro voltará a ser uma operação autêntica e viva, conservando essa palpitação emotiva sem a qual a arte é gratuita e sem sentido”. Ele acrescenta ainda que tudo isso vai desembocar numa obra, numa “composição inscrita, fixada em seus menores detalhes, e anotada com novos meios de notação.
A composição, a criação, ao invés de dar-se no cérebro de um autor, se dará na própria natureza, no espaço real, e o resultado definitivo será tão rigoroso e determinado quanto qualquer obra escrita”.
Artaud nos convida a voltar para as fontes respiratórias, plásticas, ativas da linguagem, a relacionar as palavras com os movimentos físicos que lhe deram origem, a abandonar o aspecto lógico e discursivo da palavra, a recuperar o seu sentido físico e afetivo, a não considerar as palavras apenas pelo que dizem gramaticalmente e sim sob o seu ângulo sonoro, nas correntes subterrâneas de impressões, de correspondências, de analogias, onde serão percebidas como um movimento. A partir daí, a linguagem da literatura se recomporá, se tornará viva, e poderemos inscrever uma poesia no espaço.
Em “Para Acabar com o Julgamento de Deus”, uma emissão radiofônica que Artaud escreveu e gravou pouco antes de morrer, a qual tive a felicidade de escutar em uma aula da professora Vera Lúcia Felício, quando cursei a disciplina “
O Teatro da Crueldade enquanto metafísica concreta, relação entre o sensível e o inteligível” e que ainda ressoa vividamente em mim, pude perceber de maneira bem concreta aquilo que Artaud chama de linguagem viva, incandescente, sonora, vibratória, encantatória, para além do simples uso discursivo das palavras.
Uma atrocidade poética, a voz como uma força que se materializa, sons inabituais, orgânicos, inumanos, que vão do mais grave ao mais agudo, do suave, ao subterrâneo, ao grito, palavras que têm o poder de escavação…que têm a capacidade de perfurar o tempo e o espaço. É impossível ouvir essa gravação sem que ela nos toque de maneira profunda, sem que ela não perturbe os nossos sentidos, sem que ela não nos atinja direta e totalmente.
Uma metafísica em atividade. Uma linguagem que, segundo Artaud, “desenvolve todas as suas conseqüências físicas e poéticas em todos os planos da consciência e em todos os sentidos” (…) “fazer a metafísica da linguagem articulada é fazer com que a linguagem sirva para expressar aquilo que rotineiramente ela não expressa: é usá-la de um modo novo, excepcional, incomum, é devolver-lhe suas possibilidades de comoção física, é dividi-la e distribuí-la ativamente no espaço, é tomar as entonações de uma maneira concreta absoluta e devolver-lhe o poder que teriam de dilacerar e manifestar realmente alguma coisa, é voltar-se contra a linguagem e suas fontes rasteiramente utilitárias, seria possível dizer, alimentares, contra suas origens de fera acuada, enfim é considerar a linguagem sob a forma de encantamento”.
Quero me tornar “um corpo sem órgãos”, assim Artaud preconiza o seu teatro, entendido como a ação do corpo no tempo e no espaço. Um corpo que não seja reduzido pela ciência, em partes.
Um corpo que não pensa o homem como fragmentário, mas como um ser inteiro…e é esse ser inteiro que se torna uma presença viva e atuante no espaço da representação, como nos diz Grotowski: “o ator-performer que unifica, em si mesmo, as qualidades de um guerreiro, de um dançarino, de um cantor e de um homem de sabedoria, atingindo as raízes (de seu próprio ser) e observando-as em ação, como uma testemunha muda de si mesmo”… e Artaud: “eu conheço-me, conheço-me porque me assisto, assisto a Antonin Artaud.”
Conclusão
As colocações de Artaud não são apenas visões de um grande poeta ou visionário. Ele nos coloca em contato com o verdadeiro teatro, enquanto ritual e mágico, porque nos transforma e faz ganhar alguma coisa àqueles que nos vem assistir, tornando infinitas as fronteiras do que chamamos realidade e onde o homem impavidamente torna-se o senhor daquilo que ainda não existe e o faz nascer.
Artaud escreve com sua própria carne (“lá onde outros propõem obras, eu mostro o meu espírito”), por isso só podemos entendê – lo melhor se experimentamos os seus escritos na ação concreta e com o nosso próprio corpo. Foi assim que, aos poucos, me aproximei do universo artaudiano e como ele, tenho buscado construir as bases materiais da arte teatral como uma linguagem no espaço e em movimento, onde a poesia só poderá ser eficaz se for concreta, se produzir alguma coisa através de sua presença ativa em cena.
Uma trajetória, na qual o importante não é assentar-se no que foi acumulado, não é capitalizar as habilidades técnicas e as teorias, nem passar por provas de genialidade ou de talento divino, mas no enfrentar o desafio diário em abraçar os seus limites, as suas precariedades, as suas contradições, transformando-os em matéria expressiva.
Uma arte em vida, dinâmica, em movimento, em ação. A procura de uma representação habitada por marcas de sua própria história, gravada em sua memória, escrita em sua própria carne.
Um trabalho orgânico, onde o ator coloca a sua humanidade não de maneira desatinada e descontrolada. Uma matemática criadora, embasada por uma técnica que garante qualidade, rigor, precisão e que vai possibilitá-lo locomover-se, construir-se e se tornar uma presença ativa em cena, onde o ator possa ser, ao mesmo tempo, material e organizador de seu trabalho. Ele deve ser um compositor a cada dia, esculpindo e compondo a sua obra: ele mesmo, obra viva do teatro.
Isto exige um ato de extrema generosidade, pois requisita do ator que ele seja um artesão apaixonado pelo seu ofício, criando novas maneiras de perceber o mundo e pensar a experiência humana – experiência de recuperação material do ato de existir.
Retomo alguns princípios artaudianos que, aliás, só fui compreender mais claramente, na medida em que os mesmos se fizeram ação. Quando Artaud diz que o teatro não é imitação da vida, mas duplo da verdadeira vida, aquilo que está antes da forma, um caos que se organiza em meio a conflitos, em meio às forças que se jogam umas contra as outras, uma matéria em ebulição, um vir a ser…todas essas colocações me levaram a investigar o processo do ator, anterior a qualquer representação, ou seja, toda a preparação do ator para que ele possa, através de meios seguros, trazer à luz do dia, verdades que de outra forma, permaneceriam ocultas.
O ator está comprometido com a verdade e não com a simples realidade. Assim, é necessário que ele possa, durante o seu processo de formação, entrar em contato mais profundo com o seu ser, com as suas potencialidades e limitações, encarar a sua verdade e o desafio constante de auto-superar-se.
Só assim ele vai poder estar presente de forma integral no palco, ou seja, não apenas fisicamente, mas fundindo corpo e mente, numa relação de correspondência interna e externa, que vai possibilitar-lhe uma ação real, consciente, voluntária, precisa e orgânica. Uma ação acreditável, mas não realista. Uma ação consciente, justificada e funcional que vem de impulsos interiores, por isso não mecânica, não estática.
Uma ação dinâmica, em vida, sempre em ebulição. Aqui se encontra a dramaturgia do ator, o seu estado pré – expressivo, que vai possibilitá-lo produzir ações no palco, vai colocá-lo em condições de saber agir em cena, mover-se, sentindo o movimento, com uma consciência íntima desse movimento, um duplo organismo – físico e afetivo – um atleta do coração, como diz Artaud, nessa dialética do processo artificial e processo orgânico.
Para que esse ator possa trabalhar sobre si mesmo (dimensão vital- organicidade) é necessário que ele tenha um quadro estruturado, uma partitura, um chão, uma técnica. Caso contrário o processo do ator corre o sério risco de se transformar em uma “sopa emotiva”, como diz Grotowski.
E é assim que Artaud, ao observar o Teatro de Bali, deixa claro essa questão, quando diz que os atores-bailarinos balineses entram em transe através de métodos calculados. Ao observar as grandes tradições espirituais, milenares, podemos perceber que as mesmas sempre tiveram necessidade de estruturas, de formas, isto é, todas essas tradições se manifestam dentro de um ritual preciso e rigoroso. Só assim é possível a representação visível do invisível, em que o ator conduz coerentemente gesto e pensamento, corpo e espírito, compondo a arte de tecer as ações em cena, ou seja, a dramaturgia do ator que acontece em dois níveis: pré – expressivo e expressivo.
É esse nível pré – expressivo que fundamenta a minha pesquisa junto ao Grupo Bayu, ou seja, a construção da presença cênica do ator – uma educação permanente, anterior à apresentação, aquilo que não se vê em cena (como o alicerce de um prédio), mas que constrói o “bios cênico” do ator, como diz Eugênio Barba.
Um trabalho que pressupõe consciência e vontade, em que será possível conciliar fluxo de vida e forma, espontaneidade e disciplina, pois não adianta uma composição bem feita, mas vazia, nem uma improvisação calorosa, mas sem forma. É no Oriente que novamente vamos encontrar esse equilíbrio, um teatro que é capaz de reacender em nós a chama da vida e que tem por trás um corpo técnico rigoroso.
Por isso Artaud ficou tão impressionado com o Teatro de Bali e viu no mesmo a expressão concreta do teatro que ele buscava levar ao palco. Uma cultura ligada à vida. Mas qual vida? A vida colhida na sua dimensão mais profunda, a sua existência, a sua realidade corpórea e não a imitação da aparência da vida de todos os dias, da superficialidade do cotidiano, que nada acrescenta ao nosso ser.
Como diz Peter Brook: “no palco, indivíduos que oferecem suas verdades mais íntimas para outros indivíduos na plateia lotada, partilhando com eles uma experiência coletiva” (…) “a intensidade, a honestidade e a precisão de seu trabalho deixam como legado um desafio. Não por algumas semanas, não por uma vez na vida, mas diariamente”.
E faço minhas, as palavras de Adolphe Appia: “e, onde quer que nos encontremos, onde quer que desejemos encontrar -nos, iluminemos o espaço com aqueles que lá se encontrem; a chama despertará clarões desconhecidos, projetará sombras reveladoras… e preparemos, assim, o Espaço vivo para os nossos seres vivos”.