CHICO SCIENCE – Da Lama ao Caos no swing do manguebeat
Crônica da Era do Rock, por Rodrigo Leste
— Hoje, 2 de fevereiro de 1977, 19h — Francisco de Assis França Caldas Brandão, mais conhecido pela alcunha de Chico Science, dirigia o Uno Mille branco, placa KHH-7486, na rodovia PE-1, região do Complexo de Salgadinho, divisa entre Olinda e Recife, quando foi fechado por outro veículo. Chico perdeu o controle do Uno que bateu violentamente num poste de iluminação. Um policial militar, que estava próximo do acidente, socorreu o cantor, que apresentava múltiplas fraturas no rosto e no tórax. O artista chegou ao hospital já sem vida. Ele tinha apenas 30 anos de idade.
A montadora automotiva Fiat foi acionada. Perícias mostraram que o músico só perdeu a vida porque a fivela de seu cinto de segurança se quebrou durante a batida, fazendo com que ele fosse arremessado para fora do carro. Se o dispositivo tivesse funcionado, Science poderia ter se salvado. Em 2007, a família do líder da Nação Zumbi recebeu uma indenização de R$ 10 milhões. O cálculo foi feito com base em uma hipótese dos ganhos que Science teria com sua obra até os 65 anos de idade. Trata-se de um valor recorde no que diz respeito a indenizações para pessoas físicas.
Evidentemente a indenização não foi suficiente para reparar a perda que familiares, amigos e fãs sofreram naquele dia 2 de fevereiro de 1997.
Chico Science foi o maior expoente do movimento Manguebeat, um coletivo cultural formado por músicos e artistas de outras áreas de Pernambuco. A proposta era trazer ares de modernidade para a arte regional sem perder de vista a tradição. Mesclar gêneros e vertentes adotando uma postura crítica capaz de denunciar os problemas sociais vivenciados pela população.
Nascido em Olinda, CS cresceu ouvindo ritmos nordestinos como a ciranda, o coco, o maracatu e a embolada; mas também gostava muito de rock, hip-hop (fez parte de um dos principais grupos de dança de rua do Recife), jazz e soul music americana (uma de suas maiores influências era James Brown)
.
Com a banda Nação Zumbi, criada em 1991, ele lançou dois álbuns que conquistaram Disco de Ouro: Da Lama ao Caos (de 1994, considerado pela revista Rolling Stone o 13º melhor disco brasileiro de todos os tempos) e Afrociberdelia (de 1996, que também entrou para lista dos 100 melhores discos da música brasileira de todos os tempos).
O movimento de contracultura Manguebeat teve início com o manifesto Caranguejos com Cérebro, escrito por Fred Zero Quatro (do grupo Mundo Livre S/A) em 1991. O símbolo do movimento é o caranguejo – animal típico dos mangues e fonte de alimentação para as comunidades locais – e também uma antena parabólica na lama, mostrando – além presença da tecnologia como marca do movimento – que os Caranguejos presentes no manguezal estavam antenados com tudo que acontecia ali. O grupo se identifica com o movimento estético Afrofuturismo, que une elementos africanos e ficção científica, e influenciou uma geração de artistas que vieram depois.
Trecho do manifesto Caranguejoscom Cérebro:
“Hoje, os mangueboys e manguegirls são indivíduos interessados em hip-hop, colapso da modernidade, Caos, ataques de predadores marítimos (principalmente tubarões), moda, Jackson do Pandeiro, Josué de Castro, rádio, sexo não-virtual, sabotagem, música de rua, conflitos étnicos, midiotia, Malcom Maclaren, Os Simpsons e todos os avanços da química aplicados no terreno da alteração e expansão da consciência.
Bastaram poucos anos para os produtos da fábrica mangue invadirem o Recife e começarem a se espalhar pelos quatro cantos do mundo. A descarga inicial de energia gerou uma cena musical com mais de cem bandas. No rastro dela, surgiram programas de rádio, desfiles de moda, vídeo clipes, filmes e muito mais. Pouco a pouco, as artérias vão sendo desbloqueadas e o sangue volta a circular pelas veias da Manguetown.”
Nos dois discos que gravou com a Nação Zumbi, “Da Lama ao Caos” e “Afrociberdelia”, Chico Science deixou alguns clássicos:
“A Cidade” – Junta a música dos cantadores do Nordeste, guitarras pesadas, maracatu, funk e uma boa dose de crítica social.
“A Praieira” – “Uma cerveja antes do almoço é muito bom pra ficar pensando melhor”: lição atemporal do filósofo do mangue, em uma de suas canções mais suingadas.
“Maracatu Atômico” – Toda uma nova dimensão para a composição de Jorge Mautner e Nelson Jacobina: batuques, grooves e eletrônicas, direto para as pistas de dança.
“Macô” – Gravada com Gilberto Gil em “Afrociberdelia”, a música promoveu a conexão entre duas gerações da música brasileira.
“Manguetown” – O retrato da miséria de uma cidade enfiada na lama, mas que não perde a gana de viver. Maracatus e James Brown na sua mais perfeita combinação.
Chico Science partiu deixando no seu rastro sementes de criatividade e ousadia. Viva Chico! Viva o Manguebeat!
Referências:
https://oglobo.globo.com/cultura/musica/cinco-musicas-fundamentais-de-chico-science-20859902
igormiranda.com.br/chico-science-morte
Pitacos e revisão: Hilário Rodrigues
Colaboração midiática: @rodrigo_chaves_de_freitas
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