O rosto do Silêncio
Yeda Prates Bernis
Editora Cuatiara, BH - 1992
21 x 21,5 cm - 46 páginas
Planejamento gráfico: Maxs Portes
Desenho: Sara Ávila
PRÊMIOS:
O projeto poético de Yeda, em sua fase atual, é dos mais dinâmicos e atraentes. Seus poemas são expressões da busca de um elemento imponderável: o silêncio, como sugere o título. Essa busca encontra ressonância em outro de seus importantes livros, Pêndula, centrado na temática de outro elemento imponderável: o tempo.
Mais que uma temática, mais que o adejo transitório da inspiração, o silêncio, simultaneamente esquivo e poderoso, lateja em toda a essência destes poemas, mesmo quando não explicitado em vocábulo, como nestes exemplos ao acaso colhidos:
Pise de leve para não assustar setembro (Véspera).
O tempo dorme nas coisas (Junto a um templo).
Causa e efeito, não raro o silêncio é camuflado por seus antônimos (ruído, som, canto) visando a fortalecer o vínculo à base de onde emerge:
Dom maior é o canto dos anjos-semibreve (Improviso)
Agora a primeira rosa vai amanhecer cantando (Alquimia)
É notória em todo o livro a substituição dos sons reais pelos subjetivos, ou seja, a capacidade da poetisa para escutar o inaudível: o ruído da semente germinando, o respirar das pedras, o mantra do universo, ou mesmo o rumor do crepúsculo ao se deitar pela terra (Travessia).
Pode tentar-se surpreender o mecanismo criativo da autora no pequeno poema Flauta, com fortes características de um haikai:
A flauta serra o silêncio: / uma poeira de sons esvoaça./ Insemina o corpo da tarde.
O som da flauta (ingrediente externo) agregou um núcleo complementar e inusitado ao instante de concepção do poema. O verbo "serrar" revela o tom agressivo e perturbador desse som no território silencioso da poesia emergente. Passado o impacto, ocorre a mágica integração do som físico ao som psíquico, no universo da poetisa. O silêncio interior se impõe, e o que era um agudo som a agredi-lo, agora não é senão uma poeira de sons a esvoaçar, até sublimar-se e alcançar a plenitude da silenciosa e fecunda mensagem: insemina o corpo da tarde.
Influências de filosofias e poesia orientalista, nas quais Yeda se vem ultimamente submergindo, refundidas pelo seu carisma poético, perenizam o instante das coisas mais simples às mais complexas.
Em Teofania, um de seus mais profundos poemas, a onipresença de Deus é intuída ao espraiar-se entre cristais e lama, vermes e arcanjos, em moto-contínuo e, entre galáxias e labirintos, a solfejar bachianas.
Não nos parece improvável que a divina música de Bach tenha comovido os céus, ou que deles se tenha originado. Finalizando o poema, a poderosa imagem:
O rosto de Deus transborda silêncio
entre os instantes e o eterno.
Chame-se a atenção do leitor para a riqueza vocabular extraída da música - semibreve, bemóis, escalas, etc. - incluindo a essência cantante de toda a poesia de Yeda.
Na sua qualidade de musicista e cantora exímia, o silêncio para ela não é senão a pausa da música.
Aliás, essa captação do grande silêncio do Absoluto se manifesta nas filosofias e religiões de fundo místico, através de múltiplas vozes e outros sons que se contrapõem e se depuram. Lembrem-se, por oportunos, os dois famosos oxímoros do santo poeta espanhol - Juan de la Cruz - ao tentar definir a Deus, no seu Cântico Espiritual:
"Es calada música / és solidão sonora.
Por tudo o que conseguimos captar de sua leitura, O Rosto do Silencio é, inegavelmente, um livro maduro, fruto da erupção de uma grande quietude interior à qual estes versos do poema Travessia esclarecem com simplicidade e lucidez:
Sem que esperasse, um dia tropeçou nas águas do silêncio.
E dele se encharcou, da pele ao coração.
Lacyr Schettino
POEMAS:
ALQUIMIA
Enterrei meu canarinho
junto à roseira.
Agora, a primeira rosa
vai amanhecer
cantando.
AQUELAS PALAVRAS
Nódoas na alvura
do linho.
Sobre a pedra
do olvido
deixá-las
em água e vento.
Para sempre
alcem vôo.
ECLESIASTES
Para Oswaldino Marques
A tarde levita.
Um sino de cristal
irisa o peito.
Bordo lírios
em pura
seda.
Uma voz aporta
com sua bagagem
de lembranças,
estilhaça o cristal,
tinge de vermelho
os lírios do bordado.
VÉSPERA
Um cio
antiquíssimo
engravida sons e cores.
Polens de luz
inseminam
a corola do dia.
Levita
de leve
a seiva das coisas
E busca o apelo
do que será
esplendor.
(pise de leve
para não assustar
setembro.)
QUANDO O AMOR SE ACHEGA
Quando o amor se achega
e, no outro, não encontra
espaço aberto,
ele, humilde, se aconchega
a si mesmo. e, descoberto,
se agasalha com pesado manto
de temor, dúvida e espanto.
E ao tempo pede
que o acalente,
à desventura
que o sustente
não mais que o prazo certo,
e a um vento
inexistente
que o leve
em momento
brando e breve.
IMPASSE
Vida trancada a sete chagas
aprisionada em quarto escuro.
Fantasmas deslizam sua dança
nas paredes e há pedaços de mágoa pelo chão.
Rubro fio de seda escorre, lento,
do coração,
cada centímetro, puro
desalento.
Impossível tentar frestas na esperança,
inútil fazer concha com a mão.
INSÔNIA
Sorvo a noite
despejada
em meus poros.
Espessa hora,
música abstrata.
As sombras
se alimentam
do granito
do silêncio.
Quando, um hausto
de luz, onde
um barco de palavras?
Sorvo a noite
debruçada
sobre um
nada.
FOGUEIRA
Espio à beira
do que chamam de minha alma.
Fingindo calma,
vejo no poço uma fogueira
queimando o já tão pouco
do muito edificado.
Não como um louco
mas como quem não presta
atenção, despejo gasolina.
Tudo o que resta
é um choro de menina.