Yeda Prates Bernis - escritora






grao-de-arroz

Grão de Arroz
Yeda Prates Bernis
Editora Itatiaia, BH - 1986
16,5 x 23,5 cm - 90 páginas

Projeto gráfico: Paulo Bernardo

PRÊMIO:

  • Menção Especial no Prêmio 'Jorge de Lima' - 1995 da União Brasileira de Escritores - Rio de Janeiro


  • PREFÁCIO:

    HAYCAYEDAS

    O haicai não é pelotiquice verbal, jogo-de-armar para desenfado de adultos entediados. O haicai é o espírito em conjunção.

    Uso o termo na sua acepção astronômica, ou seja, a de encontro aparente de dois ou mais corpos celestes no mesmo grau do Zodíaco.

    A tradição do cultivo do haicai reclama a modulação do espírito com a natureza, com as estações, com a fugacidade da paisagem, com a abismalidade do firmamento, com o infinitésimo dos grãos de areia, a humildade dos caramujos...

    Em suma, é a correspondência eletiva entre dois universos - o microcosmo instalado na alma do homem e o macrocosmo tout court.

    É isso que forja a simetria com o que antes chamei de conjução.

    Quem não atinar com esse rumo da sensibilidade terá para todo o sempre interdito o acesso as sutilezas do haicai.

    O poeta que dele se serve como veículo de expressão é um aparelho sumamente delicado a registrar as mais imponderáveis pulsações do orbe extraverbal e a capturar, do mesmo passo, as variações de tônus afetivo que lhes são correlatas, numa convergência surpreendente em que subjetividade e objetividade se fundem numa totalidade estética.

    Não admira que o exercício dessa modalidade de arte, como a concebem os seus adeptos orientais, se esgalhe na direção da religiosidade xintoísta e da filosofia zen.

    Há doutrinas que assentam na inteligência da inteira sinonímia entre haicai e zen. Suzuki, por exemplo, diz-nos que o haicai é uma espécie de satori, ou inspiração. E o elemento poético que opera, mercê do "choque" único, a revelação da experiência integrativa do "fora" e do 'dentro".

    É importante, como realce ao entendimento do que chamei antes de conjunção, recordar com o referido pensador que, quando se toma uma coisa, ela é tomada juntamente com todas as outras. Destarte, uma flor é a primavera e uma folha caída é o outono, ou todos os outonos.

    Espiritualmente, o haicai guarda estreita afinidade com o teatro NO, com o ikebana ou arranjo floral, o cbanoyu ou cerimônia do chá, além da vinculação já aludida com o xintoísmo

    Para mim, que sou arreligioso tais aderências radiculares não são de molde a vincar-me em especial a mente, mas, assim como eu não incorreria no solecismo de esvaziar de sua religiosidade textural uma composição sacra, digamos, de Bach, do mesmo modo timbro em zelar pela integridade de criações como as que ora me convocarn o interesse; sem a exclusão de nenhuns valores que concorram para a sua maior eficácia estética.

    O haicai é a forma mais sucinta da poemática japonesa. O nome deriva de uma palavra congênere constituída de dois núcleos semânticos equivalentes a 'inicial', 'primeiro' e 'hemistíquio'.

    Consiste de três versos, o primeiro e o último de cinco sílabas e o intermédio de sete. Nisso assemelha-se à primeira parte tanka, poema de trinta e uma sílabas ( 5 - 7 - 5 - 7 - 7 ).

    O primeiro haicai que se conhece é dos albores do Século XIII e se deve a Fujiwara no Sadaiye. Ei-lo:

    Chiru hana wo
    oikakete yuku
    arashi kana

    Alvorotado enxame
    De cerejeiras pétalas - e êhvém
    Em seu encalço, a tormenta!

    (Traduzido do inglês de Arthur Waley)

    Em que pese à sua brevidade, o haicai é um poema completo em si mesma Em seu exíguo espaço, pode projetar uma paisagem ou a subjetividade. Nas mãos de um mestre, não é raro lograr marcas ainda mais altas.

    É com o advento de Matsuo Bashô (1644-1694) que a forma exibe a maturação suprema. Depois dele e de seus discípulos, contam-se muitos exímios cultores dessas gemas.

    O "segundo pilar" foi Taniguchi Buson (1715-1785), técnico primoroso, pesquisador de singularidades e, em espírito, no pólo oposto à serenidade de Bashô.

    É, todavia, Issa (1763-1827) o poeta do haicai dileto aos amantes da poesia. Conheceu vida adversa, assinalada, não obstante, por absorvente amor de todas as coisas.

    Com o presente livro, de título tão oriental - Grão de Arroz - que traz logo à mente o estimado papel de origem sino-japonesa, bem como a atmosfera irreal das telas dos mestres do país do Sol Nascente - Yeda Prates Bernis alinha-se aos mais consumados inventores de poesia que se servem do haicai como instrumento.

    Para ter-se idéia da impregnação expressiva, no gênero, a que chegou a artista mineira, basta dizer que, conquanto já houvesse conquistado invejável nomeada como autora de obras poéticas do quilate de Palavra Ferida e de Pêndula, ela renunciou à prática da arte verbal segundo os módulos ocidentais, a fim de dar-se de corpo e alma ao magistério do bruxedo de Bashõ, plasmando jóias a que assentaria como luva a denominação haicayedas.

    Evaporar-se-á qualquer suspeita de exagero à simples leitura de uma criação deste jaez:

    Na poça d'água
    o gato lambe
    a gota da tua.

    Ou dos seguintes triunfos plásticos lavrados em seda:

    Neblina sobre o rio,
    poeira de água
    sobre água.

    De púrpura, seu mergulho
    no aquário. No coração
    o mais antigo azul.

    Ou o prodígio que aprisiona, num símbolo universal, a fugacidade de tudo que existe.

    Cai da folha
    a gota d'água. Lá longe
    o oceano aguarda.

    Ou este concentrado de sugestões que se nutrem de inesgotáveis intercambiâncias sinestésicas:

    Ah! claro silêncio do campo, marchetado de faiscantes pigmentos de sons!

    Poderia continuar suscitando o deslumbramento do leitor com muitas outras maravilhas do presente escrínio, mas me limito a estas em acréscimo:

    O coração da aranha
    se desfaz em geometria
    de seda e mandala.

    Imóvel,
    o barco.
    No entanto, viaja.

    Manchas de tarde
    na água. E um vôo branco
    Transborda a paisagem.

    Evidente se faz que Yeda Prates Bernis se identifica com uma abelha a sugar os néctares do mundo e a transmuta-los para nós no mel diáfano de intuições inesquecíveis.

    Não me demandaria grande esforço escrever um ensaio inteiro sobre o dilúvio de evocações que se irradiam de muitas dessas peças. A última transcrita, por exemplo, se mostra prenhe de valores plásticos, de visualidades dotadas de materialidade tão flagrante que alteia a um plenum toda a ordem natural. Por isso é que não se faz mister mais do que um "vôo branco" para pôr a transbordar a paisagem. E que transparências! Que fruição cósmica!

    De teor análogo é a segunda, inspirada por certo no célebre haicai de Bashô, milagre de impressionismo avant la lettre:

    Chuva estival
    torna transparente
    a Ponte de Seta.

    Para aproximar-me, porém, do haicayeda da "Neblina sobre o rio' sena inevitável que eu trouxesse a visão educada pelo sortilégio, digamos, dos "Pinheiros na neve" do grande pintor Maruyama Ôkyo, ou das "Ondas em Matsushima" de Sôtatsu.

    Posto que Yeda Prates Bernis observe o cânone estrófico, é livre a estruturação prosódica.

    Prevalece na língua japonesa, como em português, a recorrência dos cumes silábicos, o que outorga o princípio tectônico a um tipo assim de verso baseado na contagem de sílabas A arte de tal metro, contudo, propõe outros expedientes como a distribuição de tênues variações em altura, força e duração. É compreensível, pois, que, neste particular, adote a Autora procedimento não ortodoxo.

    O triunfo maior não lhe poderá ser recusado. A filtragem prismática da glória do mundo através de um instrumento parcíssimo mas de afinação soberba.

    Osivaldino Marques

    Barsília, setembro de 1985



    POEMAS:

    O coração da aranha
    se desfaz em geometria
    de seda e mandala.


    Caravelas brancas
    navegam no ar
    o nunca chegar.


    Imóvel,
    o barco,
    no entanto, viaja.


    Na poça dágua
    o gato lambe
    a gota de lua.


    Caminha a folha
    morta,
    pálio sobre formigas.


    Neblina sobre o rio,
    poeira de água
    sobre água.


    Manchas de tarde
    na água. E um vôo branco
    transborda a paisagem.


    Camisas alegres
    gangorram a/gosto
    no varal.


    De púrpura, seu mergulho
    no aquário. No coração,
    o mais antigo azul.


    Inútil. A gaiola
    nunca aprisiona
    as penas do canto.


    O grito do grilo
    serra ao meio
    a manhã.


    Sino de bronze
    neblina em prata
    ouro preto.


    Branco instante
    entre verde e azul:
    garça ou pensamento.


    No porta-retrato
    um tempo respira,
    morto.


    Recolhida em si mesma
    a alma do figo
    é flor em za-zen.


    Escorre pela folha
    a tarde imensa,
    pousada em gota dágua.


    Cai da folha
    a gota dágua. Lá longe,
    o oceano aguarda.

     

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