Cantata
Antologia Poética
Não cronológica
Yeda Prates Bernis
Editora da autora, 2004
16 x 22 cm
Coordenação Editorial e Preparação de texto:
Marcio Sampaio - Bartolomeu Campos Queirós
Capa e projeto gráfico:
Marconi Drummond
PREFÁCIO:
Conter em poesia o espanto diante dos enigmas que espiam a nossa existência é um exercício de coragem. É deixar em aberto o susto, a perplexidade, o abalo do nosso cotidiano. E a palavra é fio tênue, mas eficiente e capaz de desafiar contradições e acertos. Se é de coragem essa tarefa, é também de humildade, ao encaminhar para o campo do sensível o que há de mais profundo em nós: a fantasia.
Ao conter, a poesia consente lugar ao leitor para que ele se inscreva, em silêncio, neste labirinto de diversidade que circula em torno de cada pessoa. Em quanto fecundo em complexidade, é um labirinto desmedido a nos instigar à procura, uma vez que somos seres de relações. E o poeta, embriagado pela lucidez, descerra em cada verso suas faltas e desejos, permitindo que esse escândalo, que é nossa condição humana, dialogue com as dúvidas e incompletudes de cada sujeito. Por ser assim a poesia torna plural as inquietações que suspeitávamos apenas como singular.
Fazer do dia a dia um terreno fértil para que a poesia se configure é o ofício de Yeda Prates Bernis. Com desmedo e acuidade para se confrontar com as surpresas dos encantos e tristezas, sua escritura dá voz ao leitor. Ela nos convida a deixar vir à tona a poesia que morava em nós, esquecida ou medrosa de ser revelada. E que o assunto da poeta em pauta transita, iluminando o obscuro ou deitando sutis sombras inusitadas sobre o por demais pensado.
De seu ofício de velar as emoções, sem se perder em palavras dispensáveis, surge um invento admirável capaz de acariciar a dor, desafiar o segredo, abrandar o desassossego, revelar o encanto. Daí ser sua poesia propícia a todos. Como destinatário ela persegue apenas a intenção de se aproximar dos leitores sem máscaras ou reservas, confirmando a beleza como força inicial e movedora.
Possuir a palavra exata em momento certo, sem ignorar a sonoridade que ela guarda, para associa-la a outras, em frases melódicas, garantem a qualidade de sua forma. Yeda Prates Bernis revela e exerce a metáfora, mais do que como figura de estilo mas, por excelência, recorrendo ao seu vigor democrático, capaz de abrigar num mesmo poema nossas tantas diferenças.
Longo tem sido o percurso da poeta. Seus tantos livros testemunham seu trabalho, reconhecido pela crítica especializada como definitivo na história da poesia brasileira. Em cada obra novos assuntos, outras percepções, diversas descobertas nos instigam. Suas exigências em fazer da poesia um espaço para melhor falar e convidar o leitor a se escutar, conferem à sua poesia especial função.
Em "Cantata", Yeda Prates Bernis nos presenteia com parte significativa de seu trajeto literário. A partir de vários ângulos de suas intuições, sua obra traz mostra de seu firme trabalho. É mais uma criação em que o leitor poderá fruir de sua bela poesia. Sem desprezar os encantos das superfícies, ela nos conduz a mergulhar, sem afogamentos, no que existe de mais secreto e íntimo em nós. E só a arte responde.
Bartolomeu Campos de Queirós
POEMAS:
ALQUIMIA
"Enterrei meu canarinho
junto à roseira.
Agora, a primeira rosa
vai amanhecer
cantando."
RECEITA PARA UM HAICAI
"Se você quer compor um haicai,
à moda de Bashô,
mesmo imperfeito, verifique primeiro
se viveu inúmeras vidas.
Comece por desporjar-se do supérfluo
das vestes da alma:
paletó de esnobismo
camisas de inquietude,
agasalhos de orgulho,
meias de apegos.
Deixe o espírito, em síntese, aquietar-se,
desnudo.
Perceba o cintilar da essência de tudo
que o rodeia.
Veja o mundo com o olhar dos anjos,
faça de seus ouvidos concha de
inocência,
imite o Poeta Francisco.
Deixe que o silêncio
seja sua própria carne.
Junte, no embornal da viagem
poucas palavras:
lua, folhagem, templo, relva, primavera,
garça, brisa.
E, por que não?
pulga, piolho, o mijo de um cavalo.
Derrame sobre elas
um punhado de estrelas
e as espalhe no papel."