Yeda Prates Bernis - escritora





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A Pastora da Solidão


livro Entressombras

Por: Antônio Sérgio Bueno
Professor de Letras da UFMG

Belo Horizonte, 27 de março de 2014

Com o passar do tempo, os sentidos do nosso corpo vão sofrendo sucessivas limitações, diante das quais cada um de nós reage de maneira diferente. Há músicos que continuam produzindo belas peças apenas com seu ouvido interno. Jorge Luis Borges, grande escritor argentino, criou boa parte de sua obra literária convivendo com a cegueira. Acredito que Yeda Prates Bernis identifica-se com o autor portenho no poema “Borges”, que se inicia com estes versos:

“Em profundo mar noturno
Sombras mergulharam teus olhos
Letras escaparam dos livros
Para o abismo do nada.”

A metáfora simbolista do “abismo” traduz bem uma situação de ausência de saída e se o poema terminasse ali, seria a expressão de uma negatividade absoluta. Mas aquela estrofe aponta para outra direção:

“E vencesse a escuridão
Com a luz do imaginário.”

A alternativa vitoriosa a Borges é também compartilhada pela autora de Entressombras, que explora à exaustão a dualidade sombra/luz. O poema “Exílio”, pequena pérola, navega nas mesmas águas de “Borges”:

“Com penumbra
Incertezas me habitam
Sombras me possuem
Trevas me exilam.”

O tom escuro domina a estrofe citada: “penumbra”, “sombras”, “trevas”. Três signos da angústia da exilada voz poética. Mas a segunda estrofe é um contraponto da primeira:

“Bordo palavras
Neste papel
Estrelas, arco-íris, luar
E viajo na luz.”

É nítida a vinculação entre “palavras” e “luz”. À sequencia triádica sombria da primeira estrofe, opõe-se esta, luminosa:

“estrela, arco-íris, luar.”

A epigrafe de “Exílio” refere-se ao próprio poema, mas revela ainda melhor a poeta: “estou à tona de brilhante escuridão”. O citado paradoxo é uma cristalização da oposição claro/escuro, a qual se desdobra, várias vezes, na variante luz/sombra:

“O rio de Heráclito
Navega entre luzes
E sombras e ódios
E amores, impávido.”

Ou:

“Por campinas de luz
E florestas de assombro
Segues.”

Onde o significado “sombra” oculta-se no significante “assombro”.
A poesia de Yeda não elide o peso do viver, antes reflete a dor de existir:

“Esta mão de quase neve
Esquece dia de luz
Aninha sombra de tédio
Onde o sol era alegria.”

Entretanto essa poesia não perde a leveza, nem a delicadeza. O mel da melancolia torna leve a tristeza, como sugerem estes versos de “Bucólica”:

“A casa pousada no alto
Leve adeja
(...)
O gado rumina
Meloso e melancolia.”

O onipresente motivo poético do TEMPO permeia todo este livro. Em “A alma do tempo”, o “relógio” e a “ampulheta” aparecem como incapazes de capturar o tempo, entidade apenas perceptível nos efeitos de sua passagem. Os poemas “Pousar o tempo” e “Trajetória”, ambos de estrutura paralelística, procuram flagrar os movimentos de Cronos no percurso existencial do ser humano. A analogia entre os dois poemas fica visível ao cotejarmos suas respectivas estrofes iniciais:

“Pousar o tempo de primavera e flor
Sobre as asas do vento.” (Pousar o tempo)

“Manhã viceja a primavera
Em pólen de inocência.” (Trajetória)

Ou as estrofes finais, que tanto lembram a “pousada do ser”, de Henriqueta Lisboa:

“pousar o tempo de solidão e ausência
Sobre mármore e frio.” (Pousar o tempo)

“Noite.
Lua minguante alumia
A espera da viagem.” (Trajetória)

O mesmo paralelismo se reconhece no poema “Água”, pela retomada da matriz heraclitana tempo-água: “mãos meninas” (primeira estrofe, infância), “mãos em flor” (segunda estrofe, juventude), “mãos maduras” (terceira estrofe, maturidade) e “mãos” sem adjetivo, sem mais nada (quarta estrofe, morte).

Mário de Andrade, no fim da vida, escreve: “Quero escuridão!” Henriqueta Lisboa parece responder ao poeta paulista com estas palavras: “Quero o silêncio perfeito!”, que servem de epígrafe ao derradeiro poema. (“Sabedoria”) deste livro, cujo último verso é “a eloquência do silêncio.” Mas esta “quietude Zen” não apaga a “diáfana vivência” de Yeda Prates Bernis, que resplandece nos profundos versos de “Entressombras.”

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