Ronaldo Simões Coelho - escritor






"Nasci há 75 anos em São João del-Rei, cidade histórica de Minas, onde nasceu também, muito tempo antes de mim, Tiradentes, o herói da Inconfidência Mineira. Mas só fiquei sabendo disso muito tempo depois. Contaram-me que nasci de olhos fechados, orelhas viradas para baixo (meu pai prendeu cada uma com esparadrapo no lugar certo), feio de fazer dó.

Eu já tinha cinco irmãos mais velhos do que eu. Depois de mim veio mais um. Éramos 6 homens e uma moça. Eu, mais tarde, imitei meus pais: tenho 6 filhos marmanjos e uma única filha.

Minha casa vivia cheia de gente: parente, tias (quem quiser conhecer minha tia avó mais chegada, leia “Tia Delica”, livro que escrevi sobre nossa relação com ela), avós, tios, e uma quantidade incontável de primos e visitantes e amigos. Na enorme mesa, quitutes e quitandas, fartura de delícias, risos e conversas, gente à beça em volta. Tinha um tio que chegava recitando seus poemas favoritos, muitos dos quais sei até hoje; primos com medo de não passarem de ano; esportistas do futebol do vôlei, da natação; os piadistas; os maniados em cinema; os perseguidos políticos pela ditadura de Getúlio Vargas, etc. Havia os estudiosos, os que viviam lendo. Eu entrei nesse time logo que aprendi a ler e a escrever. E nunca mais parei. Era fácil isso, pois livro não faltava na nossa casa. Uns me davam medo, como aquele que se chamava “Podem os vivos falar com os mortos?”, enquanto outros me atraíam, como as aventuras de Tarzan, tudo que havia de Julio Verne, de Erico Veríssimo e, a maior das descobertas: Monteiro Lobato.

A menos de 100 metros de minha casa ficava a Biblioteca Municipal, que comecei a freqüentar desde cedo. O bibliotecário era um sábio, grande músico, além de ser exímio sapateiro, a mesma profissão do pai de Hans Christian Andersen, que também era músico. Ele me introduziu na leitura de Dom Quixote e de outros clássicos. E foi por isso que lhe dediquei um dos meus livros, “Pérola Torta”, tantos anos depois. Há dois anos fui homenageado nessa biblioteca e quase morri de emoção.

Como lá em casa havia a coleção do Tesouro da Juventude, eu o devorei inteiro aos 9 anos de idade.

Havia uma coleção de livros da Melhoramentos que a gente chamava de coleção dos 1500, pois o preço de cada exemplar era 1500 réis. Pequenos, de capa dura, tinham de tudo, desde histórias das Mil e Uma Noites até biografias de escritores. A gente comprava, trocava, emprestava, vendia. Até hoje tenho muitos deles.

Minhas lembranças do grupo escolar, das professoras primárias (muitas delas com quem me comunico até hoje), das férias na terra de minha mãe, onde passávamos pelos anões da Terra Caída, catávamos ouro nas ruas depois das chuvas, explorávamos cavernas, ouvíamos a história da preguiça gigante, do cavalo-da-meia-noite, conhecemos a louca que falava sozinha e que cortava lenha noite e dia, o Três-Orelhas, a Chica Papuda, o Chico Brugudum, o Vica Véia, o homem da mão postiça, a velha careca, o médico doido e o padre maluco.

Tomávamos conta dos passinhos (vejam meu livro “A pedra com o menino”) ou jogávamos bola no adro da igreja (vejam meu livro “O caso dos ponteiros do relógio”), brincávamos de gude, cabra-cega, pular-carniça, pique, pião, diabolô, faroeste, papagaio e mais uma porção de outras brincadeiras, além de freqüentarmos aulas de latim, de matemática, de ciências.

Música era ao vivo, no coreto ou no teatro. Havia discos, com uma música de cada lado, que a gente tocava na vitrola, sendo preciso trocar as agulhas (umas eram douradas e outras prateadas) a cada cinco ou seis discos ouvidos.

Como não existia televisão, uma vez por semana se ia ao cinema, onde faroestes se sucediam, além das aventuras do Capitão Marvel, que era o herói invencível em que se transformava um menino ao gritar a palavra SHAZAM. Esta palavra mágica queria dizer que o herói tinha a sabedoria de Salomão, a força de Hércules, a resistência de Atlas, o poder de Zeus, a coragem de Aquiles e a velocidade de Mercúrio. Outro herói era o Fantasma. E tudo era seriado, continuava na outra semana.

Era muito bom aprender xadrez com o sô Miguel, quando tínhamos por volta de 6 anos. Sô Miguel morava lá no fundo, numa casinha, tinha sido criado por um padre, sabia latim, português, xadrez. Foi nosso mestre. Fui visitá-lo, muitos anos depois, em São Paulo, onde morava com seus 15 filhos.

Lembro dos cheiros que vinham da cozinha e do pátio, onde fogão de lenha e forno de cupim funcionavam o dia inteiro. Cheirosa era também a roupa de cama.

Meu pai fazia esculturas com miolo de pão. Meu irmão logo acima de mim aprendeu a arte e também passou a vida fazendo cachos de flores, animais, piorras, etc. Minha mãe era loura e tinha os olhos azuis. Muito alegre, só a vi muito, mas muito triste mesmo, na época da guerra, quando nossa cidade recebeu jovens do Brasil inteiro, os pracinhas, convocados para ir lutar na Itália contra os alemães.

Depois eu fui pro ginásio, depois mudei pra Belo Horizonte, estudei medicina, casei, tive filhos, contava histórias pra eles e virei escritor de livros para crianças, o que é ótimo, até pela quantidade de gente pequena e grande que passei a conhecer por esse mundo afora."

Por Ronaldo Simões Coelho