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Revista Presença Pedagógica
Resenha publicada na
Revista Presença Pedagógica de março/abril 2016, feita por
Angela Leite de Souza sobre quatro títulos de
Lino de Albergaria.
Presença 128
Biblioteca para crianças e jovens
Uma saga do outro mundo
ANGELA LEITE DE SOUZA
Escritora e ilustradora associada a Associação de Escritores e Ilustradores de Literatura Infantil e Juvenil (AEILIJ), Associação Brasileira de Ilustradores Profissionais (ABIPRO) e Fundação Nacional de Literatura Infantil e Juvenil (FNLIJ).
Se há uma coisa que o público de literatura juvenil adora é mistério. Aliás, o ser humano tem esse gosto pelo inexplicável, pelas coisas que ficam no limiar da realidade e costumam causar arrepios. Quem, há algumas gerações, não foi magnetizado pelas peripécias de Sherlock Holmes, Hercule Poirot ou Maigret? E qual leitor de tempos mais recentes não se deliciou com algumas obras da famosa coleção Vaga-lume, da editora Ática, atraído por títulos como Um cadáver ouve rádio ou O gênio do crime? A ficção científica, as histórias de terror, os vampiros e os fantasmas, seja em forma literária, seja no cinema, desde sempre povoam o imaginário da humanidade.
Sabedor dessa preferência universal e já de longa data sintonizado com os leitores jovens, Lino de Albergaria adentra bem à vontade o gênero com quatro livros, até certo ponto, independentes. E por que “até certo ponto”? Porque o autor põe em cena os mesmos personagens – uma turma de alunos, sua professora e o motorista da escola – vivendo quatro aventuras em sequência, nas quais a presença da magia é gradativamente maior. Quando se chega às linhas finais do último volume, a impressão é a de ter lido uma novela dividida em quatro grandes capítulos.
Com o estilo apurado de sempre, em que se associam humor, ironia e uma linguagem contemporânea, própria do público adolescente, Albergaria construiu as narrativas como um jogo de adivinhação (ou de xadrez) que enreda o leitor até o final. Mas, ao seguir a trilha das tão apreciadas histórias misteriosas, o escritor adiciona elementos inovadores. Tal e qual os feiticeiros, magos e videntes que contracenam com os protagonistas, ele coloca em seu caldeirão ingredientes da cultura e do fazer literários – aqui, pitadas de realismo fantástico, ali, nonsense à Lewis Carroll e, agora, generosas porções de contos de fadas – para criar a própria receita, de assinatura inconfundível.
Boas-vindas
Lino de Albergaria vem percorrendo uma longa estrada na literatura, em especial a juvenil. São cerca de 80 títulos, sempre de grande sucesso e que resultam em constantes idas a escolas de diversos pontos do Brasil para um diálogo “ao vivo” com seus leitores adolescentes.
Bem-vindos à Casa da Neblina, o livro que abre a série, começa o processo de sedução desse público a partir do título ambíguo. A princípio, trata-se apenas de uma inocente excursão de estudantes com sua professora até um parque ecológico, situado em uma cidade histórica. À semelhança dos textos teatrais, antes do primeiro capítulo é apresentada a lista dos personagens. Entre os 13 alunos (número também sugestivo) que participam do passeio, há vários pares de gêmeos. Dona Dolores, uma diretora animada o bastante para acompanhar a turma em todas as peripécias que aguardam o grupo, parte com ele em um velho ônibus, conduzido por Gumercindo. O motorista também será personagem de destaque nas tramas, seja por suas trapalhadas, seja pela afetividade que vai estabelecendo com os alunos.
Também outros personagens adultos terão participação importante no enredo: Cacilda Lampedusa, atriz e ex-colega de Dolores, Divino Milagres, o médico-alquimista, Genoveva, a dona da pousada Casa da Neblina, onde o grupo se hospeda, e sua ajudante Hildegardes. Não é preciso dizer que Albergaria escolhe os nomes a dedo, assim como fará nos livros seguintes, geralmente expondo o lado cômico, ridículo ou estranho de suas criaturas. E não há dúvida de que o ilustrador, Filipe Rocha, com seu traço caricatural, contribui definitivamente para dar leveza e graça a aventuras cheias de calafrios.
Outra forma que o autor encontra de criar hiatos na tensão da trama é fazer a turminha cantar canções folclóricas enquanto caminha. E, também, desde o primeiro título da coleção, introduz personagens animais – no caso, o “Pássaro dos Sonhos”, borboletas, joaninhas, um elefante, uma girafa e uma zebra –, cujo papel é, curiosamente, envolver a história numa atmosfera onírica.
Essa estranha dimensão entre sonho e realidade será o pano de fundo de toda a aventura. O sumiço de Naná, uma menina que vive no seu mundo de criação, desenhando, é o ponto de partida da trama. Daí por diante – vozes entreouvidas por alguns dos colegas, episódios que acontecem sob e sobre a superfície de um lago, comportamentos esquisitos de crianças e adultos – o clima de mistério segue ao longo de toda a narrativa. E, mesmo ao fechar o livro, muitas dúvidas permanecerão, talvez, na cabeça do leitor...
Maldição das trevas!
Esta é a frase sempre repetida por um dos personagens mirins, o Pimba, a cada novo passeio proposto pela incansável dona Dolores. A imaginação dos garotos corre solta no segundo livro da série – Na Serra das Lianas –, graças aos inúmeros ingredientes “sinistros” com que Lino de Albergaria recheia sua história: uma coruja agourenta, uma aluna sonâmbula, um hotel mal-assombrado, três velhinhas suspeitas, sapos e flores.
É justamente a partir de inocentes sempre-vivas que o autor dá à trama o toque de realidade. Por trás dos indecifráveis acontecimentos descobre-se, afinal, um criminoso contrabando dessa flor. Sempre temperando-a com nomes incomuns, cantigas do folclore e muita comicidade, Albergaria desenvolve dessa vez uma narrativa mais próxima da novela policial que a anterior. Ao mesmo tempo, já que tudo se passa num ambiente rural, aproveita também para abordar as curiosidades que existem na natureza e a culinária típica desse meio. A turminha de excursionistas se encanta com esse mundo e usa seus celulares para fotografá-lo, “como se estivessem num museu”. E ainda aprende a fazer pamonhas, que depois saboreiam com gosto. Suspense e diversão, eis, portanto, a receita dessa nova aventura.
Um lugar fora do tempo
O terceiro da série é A ilha do tempo perdido, título que remete a outras obras saborosas e, inevitavelmente, a Robinson Crusoé. Mas, se este foi um personagem em luta real pela sobrevivência, na nova história de Albergaria o espaço está principalmente reservado a experiências em outras dimensões.
Agora, os alunos de dona Dolores empreendem viagem à ilha do título, que pertence a Coriolano, o avô de uma das participantes do grupo. Para dar um tom esotérico à história, na casa onde ficam hospedados trabalha uma cigana, figura às vezes furtiva, que joga tarô e tem papel decisivo no desenrolar do enredo.
Como nos livros anteriores, fatos incompreensíveis começam a acontecer desde o início, como o aparecimento inusitado de algas escuras recobrindo toda a praia e impedindo a turminha de tomar banhos de mar. Dessa vez, araras e um mico são os animais que exercem na história o papel de pontuar o jogo de esconde-esconde desenvolvido por Lino.
Outro elemento-chave são as pitangas, que têm um efeito semelhante ao do famoso pó de pirlimpimpim, de Monteiro Lobato, ao proporcionar a quem as come maravilhosas aventuras. É o que descobrem alguns alunos que transgridem a proibição de Coriolano de se dirigirem a determinado local da ilha e enveredam pela mata, atraídos pelas árvores carregadas dessa fruta. Quanto mais degustam seu sabor exótico, mais querem saboreá-la. Até que as pitangueiras se fecham ao seu redor e eles passam a viver momentos surreais, entre as paredes mutantes de uma casa iluminada de azul. Lá se veem envolvidos em um mundo mágico, que é desvendado por um dos meninos, ao descobrir prateleiras recobertas de livros e ler, em um deles, a explicação: “Chamam de mundo do faz de conta, mas representa um lugar fora do tempo habitual. Nele vivemos as experiências mais empolgantes e extraordinárias.”
Nesse livro, Albergaria emprega o mesmo recurso eficiente, comum às novelas, que irá utilizar no quarto título da série, acirrando a curiosidade do leitor: em capítulos alternados, desenvolve duas tramas paralelas que, como na geometria, se encontram a certa altura.
Margaridas, lebres, tartarugas
O quarto livro, Chá das cinco, certamente é aquele em que o escritor mais deu asas a sua imaginação, alinhando-o, de um lado, com obras latino-americanas do realismo fantástico e, de outro, com Alice e seu país das maravilhas.
Nessa narrativa, as histórias paralelas se desenvolvem de modo ainda mais complexo que o do título anterior, aumentando de ritmo à medida que a trama se torna mais intrigante. Pela primeira vez, a diretora da escola delega ao motorista Gumercindo a responsabilidade de ciceronear a excursão da turma pelo Jardim das Margaridas, na própria cidade onde vivem. Não sem algum remorso, dona Dolores prefere atender ao convite da proprietária de um antiquário – Priscila Vetusta – para um chá na própria loja, às cinco da tarde.
Estranhamente, o convite exige que ela compareça às três horas, pontualmente. A diretora descobrirá mais tarde que só foi incluída entre as demais convidadas – Griselda Gadelha, Aldana Alvina e Maximiliana Monte – para completar o número cinco. E que a anfitriã não passa de uma bruxa, fielmente (mas não para sempre) atendida pelo mordomo Gudesteu.
É ele quem traz o tal chá, em um bule negro estampado de pequenas margaridas, e o serve em xícaras com forma de lebre, sobre pires imitando tartarugas. Esses animais têm, como nos livros anteriores, um papel importante a desempenhar na trama e são o elemento de ligação com os acontecimentos que se desenrolam em paralelo, no suposto Jardim das Margaridas. A bebida é um líquido amarelo bem aguado, que Dolores, diferentemente das outras convidadas, reluta em provar. Enquanto suas colegas voltam a ser crianças, a diretora, única a não ingerir todo o chá e a permanecer adulta, vai compreendendo o motivo de estar ali.
Nesse meio tempo, o motorista trapalhão perde-se com as crianças no trajeto ao tal jardim e, simultaneamente ao que se passa no Raríssimo Antiquário, tem início uma complicada aventura, com contornos ora de sonho, ora de pesadelo. Os mistérios do chá se mesclam com os do passeio malogrado dos alunos, fornecendo pistas para uma possível solução.
Como sempre, não faltam canções a serem cantadas pelas crianças e seu desnorteado guia. Desta vez, “Onde está a margarida?” serve não apenas para aliviar o frisson provocado pelo enredo, mas, também, para sublinhar ou, até, antecipar o que nele acontece.
O fato é que Lino de Albergaria encerra com maestria o que poderíamos chamar de “uma saga de outro mundo”, já que é em uma dimensão desconhecida que transitam seus personagens. Sem dúvida, esse é o texto que mais revela a habilidade do autor para construir seus enredos, montando um verdadeiro quebra-cabeças com humor e inventividade. Um texto, como os precedentes, a ser lido com prazer até por leitores “grandinhos”, não só porque a forma é trabalhada com esmero, como porque o conteúdo, sutil ou explicitamente pontilhado de referências literárias, remete o adulto a suas primeiras – e inesquecíveis – leituras.
Bem-vindos à casa da neblina
Páginas: 63
Na Serra das Lianas
Páginas: 63
A ilha do tempo perdido
Páginas: 72
Chá das cinco
Páginas: 74
Autor: Lino de Albergaria
Atual Editora