Lino de Albergaria nasceu em Belo Horizonte, no dia 24 de abril de 1950, irmão mais novo de uma família de cinco filhos. A cidade, nas lembranças de sua infância, tinha muito mais árvores e as ruas eram de paralelepípedos, depois transformados em asfalto. Sobre esse chão, ainda havia os trilhos por onde corriam os bondes. Bandos de pombos cruzavam o céu de seu bairro e eram comuns os cachorros vira-latas, hoje desaparecidos como os pardais substituídos pelos bem-te-vis. Não fazia tanto calor, as noites eram mais frias, os prédios não eram tantos. Como a maioria das casas, aquela em que se criou, na rua Espírito Santo, perto da avenida do Contorno, tinha quintal, onde cachorros e galinhas conviviam com árvores de frutas: jabuticaba, manga, abacate, pitanga e goiaba.
As famílias vinham geralmente do interior, raros eram os pais e praticamente inexistentes os avós nascidos na capital de Minas. Seu pai, que trabalhou com presidiários e crianças abandonadas, já gostava de ler e escrever. Sua mãe gostava de encadernar livros cujas capas gravava com letras douradas. Até que um dia quebrou a mão e não teve mais a força necessária para trabalhar com o couro. Passou a pintar pratos de porcelana e caixinhas de madeira. Tanto o pai quanto a mãe nasceram em fazendas e os filhos costumavam passar as férias num sítio que o pai tinha herdado. Ali, além de mais rústico, tudo era diferente da cidade, sobretudo os cheiros e os barulhos, além dos hábitos e das conversas das pessoas.
Mas, na cidade, tinha um cômodo cheio de livros, o escritório do pai, quando trabalhava em casa, e também sua biblioteca. As primeiras histórias o menino ouviu em discos coloridos. Um deles era azul e contava a história de Ali Babá. Um dia ele abriu a porta da biblioteca vazia, depois de ter pela centésima vez escutado o disco. Lá dentro estava escuro, as paredes cobertas de livros dentro de estantes também escuras. Era misterioso como a caverna de Ali Babá. Ele podia dizer "Abre-te, sésamo" e os livros que ainda não conseguia ler piscavam os olhos para ele. As figuras os espiavam das capas, e o papel se entregava à exploração de suas mãos, quando puxava um ou outro volume para debaixo da mesa também escura, aonde se escondia do mundo, pensando em Ali Babá e na caverna dos tesouros. Um dia, ousou, pegou um lápis que tinha duas pontas, uma azul e outra vermelha, que era comum naquele tempo, e sobre as páginas de um livro rabiscou outro. Era sua primeira tentativa, ainda sem conhecer as letras, de ter um livro feito por ele.
Rapidamente, antes de entrar para a escola, aprendeu a ler. Continuou freqüentando o espaço debaixo da mesa na biblioteca vazia, que era calma, escura, uma caverna para onde fugir com os livros e se esquecer do quintal, das árvores, dos cachorros, da galinha Ximbica. Fez o curso primário, sempre gostando de escrever, num colégio que não durou muito, o Instituto Ariel, cujo nome vinha de um personagem de Shakespeare e fora dado por um poeta, Abgar Renault. Descobriu a adolescência em outra escola, bem perto de sua casa, o Colégio Estadual, com suas construções de formas tão inusitadas e que diziam lembrar os objetos escolares. O auditório, pelo menos, parecia os antigos mata-borrões e a caixa d'água, um giz. O arquiteto que imaginou aquele prédio chamava-se Oscar Niemeyer. Embora começasse a estudar literatura na escola, ainda não entendia a ligação de seus dois colégios com as pessoas e as idéias do modernismo. Também não pensava que aqueles eram os ares do seu tempo e quando, ainda aos dez anos, foi ver Juscelino Kubitschek na praça da Liberdade, apenas sabia que aquele homem era o presidente que havia mudado a capital.
Fez duas faculdades, uma pela manhã, outra à noite, Letras, ainda na rua Carangola, a poucas quadras de sua casa, e Comunicação, no Coração Eucarístico, que parecia tão longe. Os tempos mudavam, a cidade crescia, o governo era militar. Nasceu a vontade de conhecer o mundo, a liberdade parecia estar do outro lado do mar. Trabalhou um pouco, como redator de jornais de empresa, e logo que pôde, partiu para a França, pela primeira vez longe de sua cidade. Paris era todos aqueles cartões postais conhecidos, só que em movimento e uns se ligando aos outros, a pé ou de metrô. Era estranho caminhar sob a terra, como um tatu, e depois sair de novo para a luz, uma luz esmaecida, tão diferente da luminosidade intensa de Belo Horizonte. Uma boa parte do ano, Paris era cinza. De trem, seguia para o curso de editoração em Villetaneuse. De ônibus para Petit-Clamart, onde nevava de verdade e havia pinheiros sempre verdes, para o estágio na biblioteca infantil. Do outro lado do Atlântico, reencontra o escritório do pai, o mundo dos livros, que aprende a fabricar. O contato com as crianças faz com que escreva as primeiras histórias infantis, na verdade adaptações de contos populares.
No retorno ao Brasil, para trabalhar com os livros, vai viver em São Paulo. O escritor e o editor encontram espaço. Trabalha na Editora FTD, faz uma coleção didática e depois se dedica às coleções de literatura para os jovens. Tem uma curta passagem pelo Rio, assistindo a Rio Gráfica se transformar em Editora Globo. Além de editar outros autores, publica seus próprios textos em diversas casas de diversas cidades do país. Volta a São Paulo, faz free-lance para as revistas da Editora Abril. Assiste, nesse tempo, à redemocratização do país. Experimenta uma constante inquietação, a vida seguindo provisória e com gosto de aventura.
Ao voltar para Belo Horizonte, quer ter tempo para escrever e estudar. Escreve dois romances para adultos, um deles finalista da Bienal Nestlé de Literatura e o outro premiado no Concurso do Estado do Paraná e ainda finalista do Prêmio Jabuti. Passa a fazer um mestrado de literatura, em que compara aquele momento da literatura infantil com o florescimento dos folhetins no século XIX. Volta a trabalhar como editor, nas Editoras Lê e Dimensão. Sem abandonar os estudos, faz o doutorado. Escolhe como tema a cidade de Ouro Preto e o modernismo, na confluência dos trabalhos de Lucio Costa, Cecília Meireles e Guignard. O fascínio por Ouro Preto é a descoberta do contraponto de Belo Horizonte, perante a memória de um passado que Paris tem presente. Mas os livros continuam. Há um certo compromisso com os leitores e sobretudo com a escrita. Talvez por ainda haver uma dívida com a infância. A semente do sésamo tem de se abrir e se reproduzir, sempre em uma nova planta.