Angela Leite de Souza - escritora e ilustradora



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Casa de las Américas: a cultura como resistência



Angela Leite de Souza *

Com o Prêmio, a literatura latino-americana ganhou um novo espaço na arena internacional



Casa de las Americas
Jurados da última edição do Prêmio Casa de las Américas

Conhecer Cuba foi, durante as décadas de 1960 e 70, um sonho temerário. Nos vinte anos seguintes, uma aventura possível. E, a partir dos 90, uma viagem cultural quase obrigatória, especialmente para quem vive abaixo da linha do Equador. Nesses quarenta anos, a geografia política do Planeta mudou a ponto de varrer de sua face o regime (mas não as idéias) que respaldava a longa revolução de Fidel. Enquanto isso, na Ilha, não importa a que custo, algumas utopias deixaram de sê-lo: a saúde e a educação, pontos-chave do programa de governo, socializaram-se de fato. E, ao que parece, graças ao êxito desse binômio, a cultura nunca perdeu sua vitalidade.

Talvez esteja aí a explicação para a sobrevivência do Prêmio Casa de las Américas, que desde 1960 distingue as literaturas de toda a América Latina.

Longe de apenas sobreviver, o concurso vai se tornando, a cada edição, mais prestigiado. Na 42ª, que aconteceu em janeiro de 2001, o número de obras concorrentes, 849, enviadas por 22 países, revela, acima de quaisquer outros interesses - afinal, três mil dólares é uma quantia relativamente modesta - o status que a premiação confere: seja aos agraciados, seja aos mais de mil intelectuais que já se deslocaram até lá pelo surrado motivo de sempre - amor à arte.

Galeria Ilustre

Só isso explica que nos primeiros anos, alguns deles tenham atendido ao convite da Casa de las Américas à custa de perder o emprego ou de sofrer pressões por parte da imprensa em seus países. E ainda enfrentar mirabolantes itinerários para atingir Havana, àquela época mais isolada do que nunca. "Recordo que, na primeira vez que vim a Cuba, em 1966, para integrar o júri de "romance" tive de voar nada menos que 50 horas, em várias etapas", contaria, anos mais tarde, um dos maiores promotores do prêmio no exterior, o escritor Mário Benedetti.

Não foram poucos os grandes autores que emprestaram o prestígio de seus nomes ao concurso, ao integrar júris inúmeras vezes. Alejo Carpentier, Ítalo Calvino, Ernesto Cardenal, Miguel Ángel Asturias, Júlio Cortázar, Camilo José Cela, Nélida Piñon, Antônio Cândido e até o mais recente Nobel, José Saramago, que foi jurado da categoria "literatura brasileira" em 1992, são alguns dos que deram peso à história do Prêmio Casa, como é carinhosamente chamado pelos cubanos. E essa mesma história inclui, por outro lado, a honra de ter revelado e laureado escritores que apenas despontavam na cena literária, como o uruguaio Eduardo Galeano, o chileno Antônio Skármeta ou o argentino Ricardo Piglia.

Do Brasil, já é longa a lista de premiados - entre eles, Oduvaldo Viana Filho, Moacyr Scliar, Ana Maria Machado, Deonísio da Silva - e maior ainda a de jurados, alguns famosos na esfera literária e fora dela: Chico Buarque, Ziraldo, Rubem Fonseca, Antônio Callado, João Ubaldo Ribeiro e, nos idos de 1982, Fernando Henrique Cardoso.

Paciência e bom humor

Fundada em 1959, sob a direção de Haydée Santamaría, naquele ano mesmo a Casa de las Américas divulgou o regulamento da primeira edição do Prêmio, que então se denominava "Concurso Literano Hispanoamericano". Aquela altura, premiavam-se apenas cinco gêneros: romance, conto, teatro, ensaio e poesia. Em 1964, autores brasileiros passaram a ser aceitos, o que fez mudar o nome do certame para "Concurso Literario Latinoamericano". Mas foi só em 1980 que a nossa literatura ganhou categoria própria. Enquanto isso, outros gêneros e categorias foram incorporados, como a literatura infanto-juvenil, a caribenha em inglês e creole, a caribenha em francês e creole, as indígenas.

Hoje, os responsáveis pelo Centro de Investigações Literárias, que coordena o concurso, têm justificado orgulho dessa abrangência. Afinal, dizem, é raro um prêmio que contemple ao menos quatro gêneros por edição, com obras escritas em seis línguas e cobrindo um espaço geográfico tão amplo quanto complexo. Desde a criação do concurso, nada é mais importante, no entanto, do que a edição, pela Casa de las Américas, de todos os livros vencedores. Essas publicações hoje chegam à tiragem de 10 mil exemplares e são distribuídas, dentro das possibilidades, pelo mercado latino-americano.

Uma coisa, porém, são as estatísticas e os números que se colocam no papel. Outra é acompanhar de perto o processo do concurso, que tem início poucos meses após o encerramento da edição anterior. Já no meio do ano, são impressas mais de três mil convocações, contendo o regulamento, para serem distribuídas pela América Latina em meio a dificuldades de toda ordem, inclusive a lentidão postal. Ao mesmo tempo, sondam-se os possíveis jurados. Apesar de um ou outro entrave burocrático, tudo acabará bem: na última semana de janeiro do ano seguinte, os cubanos, donos de uma paciência e bom humor inalteráveis, estarão à espera dos novatos e dos veteranos com o mesmo sorriso hospitaleiro.

Soyinka, o bruxo

Uma vez em Havana, entra em ação um esquema simples e eficiente. No próprio hotel em que os jurados (25 em 2001) se hospedam - o Habana Riviera, de arquitetura estilo anos 50, à beira do famoso Malecón, instala-se também o escritório da Casa de las Américas que, em pouco tempo, se converte numa babel de sotaques castelhanos e, mais raramente, algum portunhol.

Uma programação cultural foi criteriosamente montada e, pelo menos duas vezes por dia, esses desconhecidos, que ao final de duas semanas terão se tornado velhos amigos, embarcam no ônibus da Casa. O destino tanto pode ser um passeio por Habana Vieja, o velho centro da cidade, que está sendo restaurado, e onde, como quaisquer turistas, conhecerão La Bodeguita del Medio e o quarto de hotel em que Hemingway vivia, quanto uma ida ao concerto oferecido especialmente por Chucho Valdés e seu quarteto aos Jurados do Prêmio Casa.

A condição de jurado funciona como uma espécie de senha que, uma vez ouvida por qualquer cubano, provoca automaticamente admiração e redobrada gentileza. Na verdade, o povo de Cuba, com um grau de instrução bem acima da média latino-americana, sabe que o Prêmio Casa é um dos principais responsáveis pela imagem cultural do país. Tanto assim que, para a cerimônia de abertura, ninguém menos que um Prêmio Nobel de Literatura pode ser o convidado de honra.

Neste ano, o escritor nigeriano Wole Soyinka lá estava para fazer o discurso inaugural diante de um auditório lotado. "Se Cuba tem uma lição a oferecer ao mundo, disse ele, é a de que reconhece, em seu próprio solo, a natureza de 'bruxa' no artista em geral - um ser possuído por visões incômodas, às vezes socialmente irruptoras, sacudido internamente por visões heréticas. Os prêmios literários existem para honrar o casamento entre essa inspiração original, não complacente com a indústria, e a condição artística." E finalizou: "A aceitação social desta missão como nossa razão de ser é o que justifica a rede global de bruxas da qual a Casa de las Américas é uma parte vital. E isso, acima de outras considerações, o que valida nossa celebração da criatividade humana."

Casa de las Americas
Fachada do prédio da Casa de las Américas

Estivadores da cultura

Passadas as emoções iniciais, tem início uma atividade febril entre os diversos membros da Casa, incumbidos de dar ao corpo de jurados todo o suporte necessário ao desempenho de seu papel. Assim, algumas horas depois da cerimônia inaugural, o ônibus vai sendo carregado com uma impressionante bagagem: primeiro, as inúmeras malas e valises dos visitantes; depois, caixas e mais caixas de papelão contendo o que, pelo volume, aterra a todos - os originais concorrentes.

Os participantes da "maratona literária" serão levados para um hotel campestre, próximo à cidade histórica de Matanzas, e longe o suficiente de Havana para que todos se concentrem no objetivo principal - a leitura. À chegada, acontece a operação inversa e o pessoal da Casa de las Américas, verdadeiros "estivadores da cultura", irá distribuir pelos quartos dos hóspedes suas respectivas cotas de originais. Em 2001, porém, uma novidade foi introduzida em relação à categoria Literatura Brasileira: passaram a concorrer obras publicadas nos três anos precedentes, com o objetivo de tornar conhecido em Cuba e em toda a América Latina o que se publica no Brasil. Assim sendo, a tarefa dessa vez imposta aos jurados brasileiros - escolher o "melhor" entre 321 livros, muitos deles de autores consagrados - pareceu-lhes quase impossível.

Novo espaço

De volta a Havana, uma sucessão de mesas-redondas, em que cada grupo de jurados debateu sobre sua especialidade, e de entrevistas na televisão, onde o Prêmio Casa merece o espaço de vários boletins diários.

Chegara praticamente ao fim o trabalho dos 25 jurados. Entre os de literatura brasileira, a satisfação de terem feito uma escolha que lhes parecia justa: o Prêmio para Nau Capitânia, de Walter Galvani, obra e autor pouco conhecidos que haviam resgatado com grande maestria o perfil de um personagem também nebuloso para a maioria dos brasileiros - Pedro Álvares Cabral; e a menção especial para "(os sobreviventes) ", de Luiz Ruffato (vide entrevista), um livro-revelação que, auguravam todos, ainda daria muito o que falar no Brasil.

E, se a abertura do Prêmio se reveste sempre de emoção sem pompa, o encerramento poderia trazer surpresas. Ou melhor, trouxe a resposta à indagação que intimamente todos se faziam - veriam ou não o "Comandante" em pessoa? Às onze horas da noite, bem depois de terminado o anúncio dos vencedores, o grupo era convocado ao palácio do governo, onde Fidel o receberia com um banquete. Eram quase quatro horas da madrugada quando os convidados saíram de lá, levando a indelével impressão de um homem excepcional que, empertigado e forte em seus 75 (???) anos, é capaz de permanecer horas e horas em pé, sem beber, ou comer, apenas falando, falando, falando.

Quanto ao Prêmio e seus rumos, nem mesmo o atual presidente da Casa de las Américas, o escritor Roberto Fernández Retamar, arriscava-se a prever. Dizia ele, em 1998, quando, a seu ver, o concurso e a instituição já haviam atingido a plena maturidade: "Que farão os jovens com o Prêmio Casa? Ficará como está? Desaparecerá? Encontrará maneiras criadoras de continuar prestando serviços? (...) Quero deixar estas perguntas no ar, com a certeza de que serão bem respondidas". Seja qual for o futuro para aqueles que todos os anos acionam a máquina do prêmio, o que realmente importa é a certeza de que, através dele, a literatura latino-americana ganhou um novo espaço na arena internacional.

* Angela Leite de Souza é jornalista, escritora e ilustradora. Conquistou o Prêmio Casa de las Américas em 1997, com o livro de poemas Estas Muitas Minas, e fez parte do júri que escolheu o Prêmio de 2001.

MATÉRIA RETIRADA DA REVISTA PRINCÍPIOS - Revista Teórica, Política e de Informação. Número 61 - Maio/Junho/Julho/2001.