Acredito que, antes de mais nada, todo autor é um leitor. Sem dúvida, o leitor constrói o autor. Uma frase atribuída a Flaubert, "Madame Bovary, c'est moi", cuja autenticidade até hoje se discute, com diversas tentativas de interpretação, para mim significaria, em última instância: "assim como minha personagem Emma Bovary, sou um leitor."
Para alguns, Flaubert estaria se defendendo do processo a que foi submetido por atentar contra a moral e os bons costumes do século XIX. A grande dose de realismo que aplicou a seu romance teria feito com que muitos leitores acreditassem que falava de uma dama, adúltera, de existência real. No entanto, tudo era ficção, fruto da imaginação do autor. Mas Emma Bovary, leitora de obras românticas, teceu sua tragédia por acreditar em suas leituras.
A biografia de Flaubert mostra que ele também era um exagerado leitor, ainda no liceu de Rouen, nunca abandonando seus romances, companhia constante no dormitório. O vício, que emprestou a Emma, não o deixou nem quando escreveu "Bouvard e Pécuchet". Para escrever esse livro, teria lido mais de mil volumes...
Nosso José de Alencar, em sua autobiografia "Como e porque sou romancista", enfatiza a leitura tanto no ambiente escolar, evocando seu mestre Januário Mateus Ferreira, quanto nos serões de família, quando, à maneira de Flaubert e Emma Bovary, gravava no espírito um escasso repertório de romances.
Escreveu Alencar, relembrando a juventude: "Era eu quem lia para minha boa mãe não somente as cartas e os jornais, como os volumes de uma diminuta livraria romântica formada ao gosto do tempo (...). Minha mãe e minha tia se ocupavam com trabalhos de costuras, e as amigas para não ficarem ociosas as ajudavam. Dados os primeiros momentos à conversação, passava-se à leitura e eu era chamado ao lugar de honra". E ele se perguntava: "Foi essa leitura contínua e repetida de novelas e romances que primeiro imprimiu em meu espírito a tendência para essa forma literária que é entre todas a de minha predileção?" (ALENCAR, José de. Como e porque sou romancista. Campinas: Pontes, 1990).
Não fui nem sou um leitor tão compulsivo nem o gosto pelos livros prejudicou meu destino como aconteceu à pobre Bovary. Lembro-me que era analfabeto ainda, mas gostava de ouvir histórias, não só na voz humana como em gravações em discos coloridos, destinados às crianças de minha geração. Meu disco favorito contava a história de "Ali Babá e os Quarenta Ladrões". Ouvia muitas vezes a longa história, que ocupava dois discos. Mas não eram as peripécias do mercador oriental que me encantavam. Ficava imaginando a caverna de tesouros e a senha para que ela, magicamente, os revelasse: "Abre-te, sésamo!".
Existia um cômodo em minha casa, ou de minha família, que era o escritório e a biblioteca de meu pai. Não tinha janelas e as paredes eram cheias de livros, que eu não podia ler porque ainda não sabia. Era escuro, uterino e misterioso como a caverna da história de Ali Babá. As figuras me espiavam das capas, o papel se entregava à exploração das minha mãos, quando, sozinho, entrava naquele cômodo vazio e que tanto me atraía. Talvez os livros me piscassem os olhos, fazendo de conta que eram os tesouros a forrar as paredes do lugar encantado que uma voz, para mim anônima, descrevia nos discos.
Um dia não me contive, peguei um lápis na escrivaninha, um lápis de duas pontas, uma azul e outra vermelha, abri um livro e rabisquei outro sobre ele. Tentava contar uma história por meio de desenhos, com bonecos humanos e bichos, em vermelho e azul. Estava, aos três anos, criando meu primeiro livro, minha versão pessoal de um palimpsesto. Minha mãe achou interessante, colocou a data. Trinta anos depois me daria de presente.
Nesse período, fui à escola, decifrei os códigos da leitura e da escrita, me tomei de paixão pela literatura, o que me fez estudar Letras e me levou à França para estudar editoração, pois queria trabalhar com livros, aprender a fabricá-los. Lá, entrei em contato com a literatura infantil, fiz estágios em revistas e em uma biblioteca para crianças. Na verdade, minha aproximação com o gênero foi por acaso, pois foram aqueles lugares e as pessoas que trabalhavam ali as únicas que me aceitaram como estagiário.
Na volta, exerci minha profissão de editor em São Paulo, no Rio de Janeiro e, finalmente, em Belo Horizonte, retornando à minha cidade natal, ao mesmo tempo em que publicava meus primeiros livros, dedicados aos jovens leitores.
Como autor de livros para crianças e jovens, passei a ser convidado para palestras e conversas com os leitores, no próprio ambiente da escola. Foi quando tive a chance de confrontar meus leitores. Descobri que não escrevo para mim mesmo, nem por um impulso incontrolável. Escrevo para pessoas de carne e osso, que podem conversar comigo e se fazer ouvir. Muitos autores, nessa área, não gostam de visitar escolas. Eu sempre tenho uma grande curiosidade pelo que pode se passar ali e, confesso, um gosto por esses encontros. Aprendi a levar em conta a opinião de alguns leitores. Às vezes, expressam uma sabedoria que não encontrei nas minhas leituras e me vejo a incorporá-las em meus livros e no meu modo de escrever.
Assim, as escolas passaram a ser cenário de minhas histórias, quando adoto o realismo em minha literatura. Crio personagens próximos de meus leitores, que passam boa parte do seu tempo na escola. Também gosto de representar a família: pais, irmãos, avós, que contracenam com colegas e professores de meus heróis, de preferência pré-adolescentes. Ali, na escola ou na própria casa, eles atuam e se relacionam com o outro. Vivem conflitos, descobrem a vida, com obstáculos e sofrimentos ou alegria e esperança. Para as crianças menores, faço questão de um final feliz. Elas mesmas cobram esse final, que a maior parte dos contos de fadas incorporou. Final feliz é promessa de futuro, é esperança e confiança em nossos projetos na vida. A esperança o justifica.
Mas também crio histórias em um tempo fora do real, como o tempo suspenso dos contos de fadas. Aí minha imaginação se solta, perseguindo imagens que o inconsciente sugere. Essas histórias fantásticas, cheias de peripécias, são meu tributo ao meu primeiro herói, Ali Babá.
De um certo tempo para cá, entendi que escrever para um público jovem tem algo parecido com o ato de escrever uma carta: nas cartas a gente tem em mente nosso interlocutor e, para chamar sua atenção, nos aproximamos de sua linguagem e de seu interesse. Não é que o leitor deve dar, sozinho, o tom do jogo, mas a gente se torna mais motivado a falar daquilo que quer, se já sabe como corresponder à expectativa do destinatário. E não se trata de manipulação, pois incorporar o que se ouviu dele na nossa maneira de escrever torna-se, de alguma maneira, uma espécie de diálogo.
Também gosto de ler meus leitores. Não só os que me descobrem e me escrevem pessoalmente, mas desde que comecei a ter acesso à Internet passei a descobrir que há pessoas que falam de mim e do que escrevo, sobretudo, em seus diários eletrônicos, seus blogs. Freqüentemente tento me comunicar com eles, mas nem sempre faço isso. Há quem não acredita que o autor do livro que comentaram esteja se manifestando pessoalmente (ou virtualmente). Aliás, uma vez, alguém com meu nome escrevia para o autor do blog. Como muitos escritores dialogavam bastante com esse jovem, achei que eu e os outros já éramos personagens criados por ele próprio. Não me importei de ter virado um outro. Afinal, tudo é ficção, tudo é narrativa, quando se torna mediado pela escrita.
Então, como posso ser meus leitores, eles podem ser, de certa forma, eu mesmo. Enfim, todos somos Madame Bovary, fingindo, como Pessoa, ser dor a dor que deveras sentimos. Nosso dilema, também nosso prazer comum, é que pertencemos todos à mesma classe dos leitores!