Tadeusz Kantor, parte 3
Teatro Contemporâneo

Tadeusz Kantor, parte 3

Teatro  Contemporâneo | Tadeusz Kantor e Artaud

Tadeusz Kantor e Antonini Artaud

Por muitas décadas, as máquinas e manequins de Kantor, seres atocaiados pela morte, ocuparam os palcos da Europa. Seu teatro, fundado meio século depois do teatro de Stanislawski e depois das experiências das vanguardas cubista, dadaísta, construtivista, surrealista, marca o retorno ao teatro não institucionalizado, um novo paradigma…

Ao percorrer o universo teatral de Tadeusz Kantor, busquei perceber sua relação com o “teatro e seu duplo” de Antonin Artaud, tendo encontrado elementos intrínsecos à concepção estética de ambos: objetos, máquinas, bonecos, manequins, a repetição, a ilusão e a realidade, relação espectador-ator, formas de expressões tomadas do circo, perversões, choque, situações cênicas insólitas, a palavra e o literário no teatro, a dialética material da morte e da vida.

O imaginário em cena. Espaço onírico que leva o indivíduo ao fundo das coisas. Ancoragem poética. Nada é definitivo. Tudo flui. Plurivalência da imagem. Dialética de aberrações, fantasmas, miragens e alucinações. Um olhar para o panorama total do mundo, abundante em coisas belas, estranhas, problemáticas, terríveis e divinas. A crueldade, o duplo, o transe, a magia, a poesia, o sonho, o encantamento. Visões. Um além-teatro, contra o que na vida há de constituído, de manifesto, de fixo. Um além-teatro, na medida em que pretende para si a eficácia da magia e dos ritos, nos levando ao encontro com as profundezas, com o estado supremo da afirmação da existência, do qual nem mesmo a suprema dor pode ser excluída.

Um jogo ligado ao imprevisível, onde as regras nascem durante, nascem da lógica do acaso, onde cada lance lança suas regras, abolindo as certezas, abrindo novas questões, num olhar sempre inaugural sobre o mundo, emergindo no Perigo, no desejo invencível do vir-a-ser. “O teatro é um ato superior porque pode reabrir o espaço virtual das formas e dos símbolos, alimentando e expandindo os conflitos” (Antonin Artaud).

Um teatro instaurado que se dá na imobilidade do instante e irrompe esse instante. Não há começo, não há fim, não há linearidade, não há ponto fixo. Um teatro que faz acontecer a suspensão de certezas inabaláveis: “não somos livres e o céu ainda pode desabar sobre nossas cabeças” (Antonin Artaud). Leia, nesta página cultural, o artigo “Teatro, enquanto obra de arte total”, de Antonin Artaud.

Manifesto - O Teatro da Morte (integral)

1. Craig afirma: a marionete deve retornar; o ator vivo deve desaparecer. O homem, criado pela natureza, é uma ingerência estranha na estrutura abstrata de uma obra de arte.

De acordo com Gordon Craig, em algum lugar às margens do Ganges, duas mulheres invadiram o templo da Divina Marionete, que conservava com vigilância o segredo do verdadeiro TEATRO. Essas duas mulheres tinham inveja desse SER perfeito e almejavam seu PAPEL, que era iluminar o espírito dos homens pelo sentimento sagrado da existência de Deus; elas almejavam sua GLÓRIA. Apropriaram-se de seus movimentos e de seus gestos, de suas vestimentas maravilhosas, e, pelo recurso de uma medíocre paródia, admiraram-se satisfazendo os gostos vulgares da plebe. Quando enfim elas fizeram construir um templo à imagem do outro, o teatro moderno – o que conhecemos muito bem e que ainda permanece – havia nascido: a ruidosa Instituição de utilidade pública. Ao mesmo tempo que ela, surgiu o ATOR. Em apoio à sua tese Craig invoca a opinião de Eleonora Duse: “Para salvar o teatro, é preciso destruí-lo; é preciso que todos os comediantes e todas as comediantes morram de peste… são eles que levantam obstáculos à arte…”

2. Teoria de Craig: o homem-ator suplanta a marionete e toma seu lugar, causando assim o declínio do teatro.

Há algo de imponente na atitude desse grande utopista quando ele afirma: “Exijo com toda a seriedade o retorno do conceito da supermarionete ao teatro… e desde que ela reapareça, as pessoas poderão novamente venerar a felicidade da existência e render uma divina e alegre homenagem à MORTE.” De acordo com a estética SIMBOLISTA, Craig considerava o homem submetido a paixões diversas, a emoções incontroláveis e, por conseguinte, casuais como um elemento absolutamente estranho à natureza homogênea e à estrutura de uma obra de arte, como um elemento destruidor do seu caráter fundamental: a coesão. Craig – assim como os simbolistas cujo programa, em seu tempo, teve um desenvolvimento notável – tinha atrás de si os fenômenos isolados mais extraordinários que, no século XIX, anunciavam uma época nova assim como uma arte nova: Heinrich von Kleist, Ernst Theodor Hoffmann, Edgar Allan Poe… Cem anos antes, e por razões idênticas às de Craig, Kleist tinha exigido que o ator fosse substituído por uma marionete, pensando que o organismo humano, submetido às leis da NATUREZA, constituía uma ingerência estranha na ficção artística nascida de uma construção do intelecto. As outras censuras de Kleist faziam-se sobre os limites das possibilidades físicas do homem e ele denunciava além disso o papel nefasto do controle permanente da consciência, incompatível com os conceitos de encantamento e de beleza.

3. Da mística romântica dos manequins e das criações artificiais do homem do século XIV ao racionalismo abstrato do século XX

Ao longo do caminho que se pensava seguro e que foi tomado ao homem do Século das luzes e do racionalismo, eis que avançam, saindo repentinamente das trevas, sempre mais numerosos, os SÓSIAS, os MANEQUINS, os AUTÔMATOS, os HOMÚNCULOS – criações artificiais que são várias injúrias às criações próprias da NATUREZA e que carregam em si todo o menosprezo, todos os sonhos da humanidade, a morte, o horror e o terror. Assiste-se ao aparecimento da fé nas forças misteriosas do MOVIMENTO MECÂNICO, ao nascimento de uma paixão maníaca de inventar um MECANISMO que sobrepujasse em perfeição, em implacabilidade, o tão vulnerável organismo humano. A tudo isto em um clima de satanismo, no limite do charlatanismo, das práticas ilegais, da magia, do crime, do pesadelo. É a CIÊNCIA-FICÇÃO da época, na qual um cérebro humano demoníaco criava o HOMEM ARTIFICIAL. Isto significava simultaneamente uma crise de confiança súbita em relação à NATUREZA e a esses domínios da atividade dos homens que lhe estão intimamente associados.

Paradoxalmente, é dessas tentativas românticas e diabólicas ao ponto de negar à natureza seu direito à criação que nasce e se desenvolve o movimento RACIONALISTA ou mesmo MATERIALISTA – sempre mais independente e sempre mais perigosamente distanciado da NATUREZA – a corrida para um “MUNDO SEM OBJETO”, para o CONSTRUTIVISMO, o FUNCIONALISMO, o MAQUINISMO, a ABSTRAÇÃO e, finalmente, o VISUALISMO PURISTA que reconhece simplesmente a “presença física” de uma obra de arte. Esta hipótese arriscada que tende a estabelecer a gênese pouco gloriosa do século do cientismo e da técnica engaja apenas minha própria consciência e serve unicamente à minha satisfação pessoal.

4. O dadaísmo, introduzindo a “realidade já pronta” (os elementos da vida), destruiu os conceitos de homogeneidade e de coerência da uma obra de arte postulados pelo simbolismo, a Arte nova e por Craig

Mas retornemos à marionete de Craig. Sua idéia de substituir um ator vivo por um manequim, por uma criação artificial e mecânica, em nome da conservação perfeita da homogeneidade e da coerência da obra de arte, não tem mais sentido hoje. Experiências ulteriores que destruíram a homogeneidade da estrutura de uma obra de arte introduziram nela elementos ESTRANHOS, através de colagens e de montagens; a aceitação da realidade “já pronta”; o pleno reconhecimento do acaso; a localização da obra de arte na estreita fronteira entre REALIDADE DA VIDA e FICÇÃO ARTÍSTICA – tudo isto tornou negligenciáveis os escrúpulos do início de nosso século, do período do simbolismo e do “Art nouveau”.

A alternativa “arte autônoma de estrutura cerebral ou perigo de naturalismo” deixou de ser a única possibilidade.
Se o teatro, em seus momentos de fraqueza, sucumbiu ao organismo humano vivo e a suas leis, é porque aceitou, automática e logicamente, esta forma de imitação da vida que constituem sua representação e sua re-criação.
Ao contrário, nos momentos em que o teatro era suficientemente forte e independente para permitir-se libertar-se dos constrangimentos da vida e do homem, produzia os equivalentes artificiais da vida que, sujeitando-se à abstração do espaço e do tempo, eram ainda mais vivos e mais aptos a atingir a absoluta coesão.

Em nossos dias essa alternativa na escolha perdeu tanto seu significado quanto seu caráter exclusivo. Pois criou-se uma nova situação no domínio da arte e existem novos quadros de expressão.

O surgimento do conceito de REALIDADE “JÁ PRONTA” retirada do contexto da existência tornou possíveis sua ANEXAÇÃO, sua INTEGRAÇÃO na obra de arte através da DECISÃO, do GESTO e do RITUAL. E isto é presentemente muito mais fascinante e mais poderosamente inserido no real que qualquer entidade abstrata ou artificialmente elaborada, ou que esse mundo surrealista do “MARAVILHOSO” de André Breton. Happenings, “eventos” e “instalações” reabilitaram impetuosamente regiões inteiras da REALIDADE até então desprezadas, desembaraçando-as do peso de suas destinações terra a terra. Esse DESLOCAMENTO da realidade pragmática – essa “suspensão” para fora das fronteiras da prática cotidiana – puseram em movimento a imaginação dos homens muito mais profundamente que a realidade surrealista do sonho onírico.

Foi isto que finalmente fez desaparecer toda importância aos temores de ver o homem e sua vida interferir no plano da arte.

5. Da “realidade imediata” do happening à desmaterialização dos elementos da obra de arte.

Portanto, como toda fascinação, também esta tornou-se, depois de certo tempo, CONVENÇÃO pura – universalmente, tolamente, vulgarmente utilizada. Essas manipulações quase rituais da realidade, ligadas à contestação do ESTADO ARTÍSTICO e do LIGAR reservado à arte, começaram, pouco a pouco, a tomar um sentido e um significado diferentes. A PRESENÇA material, física do objeto e o TEMPO PRESENTE no qual podem figurar unicamente a atividade e a ação aparentemente atingiram seus limites e tornaram-se um entrave. ULTRAPASSÁ-las significava privar essas relações de sua IMPORTÂNCIA material e funcional, ou seja, de sua possível APREENSÃO.

(Dado que trata-se aqui de um período muito recente, ainda não terminado, fluido, as considerações seguintes referem-se e ligam-se às minhas próprias atividades criativas.) O objeto (A Cadeira, Oslo, 1970) tornava-se vazio, desprovido de expressão, de encadeamentos, de pontos de referência, de sinais de uma intercomunicação voluntária, de sua mensagem; ele estava orientado para nenhum lugar e tornava-se um engodo. Situações e ações permaneciam encerradas em seu próprio CIRCUITO, ENIGMÁTICAS (O Teatro impossível, 1973). Em minha manifestação intitulada Cambriolage (Furto) deu-se uma INVASÃO ilegítima sobre o terreno em que a realidade tangível encontrava seus prolongamentos INVISÍVEIS. Cada vez mais distintamente se precisa o papel do PENSAMENTO, da MEMÓRIA e do TEMPO.

A condição de ator

O desmoronamento da moral burguesa do século XIX, quando somente os maiores talentos obtinham com muita dificuldade direito de cidadania, permite enfim ao ator chegar a uma posição social normal.

A revolução social dos anos vinte faz dele um trabalhador da cultura de vanguarda. São os anos em que o construtivismo, liberando a arte dos miasmas do idealismo, fascina o mundo por sua doutrina de uma arte concebida como fator de organização dinâmica da vida e da sociedade.

À medida que se desenvolve a civilização industrial e técnica, que a arte perde em numerosos países sua posição de vanguarda e seu dinamismo, o teatro transforma-se cada vez mais em uma instituição e o ator, por conseguinte, em funcionário a ela incorporado. Os direitos que havia obtido esfacelam-se ao contato com uma sociedade de consumo cujas idéias e existência estão fundamentadas sobre um pragmatismo radical, o culto da eficácia e um sentido de automatismo hostil a qualquer intervenção perturbadora da arte.
A assimilação a essa sociedade leva à surdez artística, à indiferença e ao conformismo. Essa decadência é acelerada pela expansão dos meios de informação de massa: cinema, rádio, televisão.

Nesta etapa final reencontramos atitudes que têm estado sempre próximas uma da outra, a saber: o conformismo moral, uma indiferença absoluta quanto à evolução das formas e também a esclerose artística.
Uma certa laicização e a democratização do ator contribuíram para sua emancipação histórica, mas paradoxalmente tornaram-no medíocre.
A assimilação e a recuperação do artista e de sua arte pela sociedade de consumo encontram um exemplo típico no ator.

O ator-artista foi desarmado, aprisionado. Sua capacidade de resistência, tão importante para ele mesmo quanto para o papel que desempenha na sociedade, foi destruída, o que o leva a obedecer a todas as conveniências e leis que regem o bem-estar na sociedade de produção e de consumo, a perder sua independência, que é o que, colocando-o fora da comunidade, permite-lhe agir sobre ela.
A reforma do teatro e da arte do ator deve realizar-se em profundidade e tocar os fundamentos do ofício.

Durante um longo período de isolamento social, a atitude e a condição do ator carregaram a marca profunda de traços naturalmente saídos do mais secreto de seu psiquismo, que o distinguem da sociedade bem pensante e fazem nascer, por sua vez, formas autônomas de ação cênica.

Esbocemos uma imagem dessa personagem:
– O ATOR
– retrato nu do homem,
– exposto a qualquer transeunte,
– silhueta elástica.
– O ator,
– forasteiro,
– exibicionista desavergonhado,
– simulador fazendo demonstração de lágrimas,
– de riso,
– de funcionamento
– de todos os órgãos,
– dos vértices do espírito, do coração, das paixões,
– do ventre
– do pênis,
– o corpo exposto a todos os estimulantes,
– todos os perigos
– e todas as surpresas;
– engodo,
– modelo artificial de sua anatomia
– e de seu espírito,
– renunciando à dignidade e ao prestígio,
– atraindo os desprezos e os escárnios,
– tão perto das lixeiras quanto da eternidade,
– rejeitado pelo que é normal
– e normativo em uma sociedade.
– Ator
– que vive unicamente
– no imaginário,
– levado a um estado de insatisfação crônica
– e de insaciabilidade perante tudo
– aquilo que existe realmente,
– fora do universo da ficção,
– que o compele
– a uma nostalgia perpétua
– constrangendo-o
– a uma vida nômade.
– Ator forasteiro,
– eterno errante
– sem lar nem lugar,
– carregando em suas bagagens
– todo o seu bem,
– suas esperanças, suas ilusões perdidas,
– o que é sua riqueza
– e sua carga,
– uma ficção
– que ele defende zelosamente até as últimas conseqüências
– contra a intolerância de um mundo indiferente.

(In “Le Théâtre de la Mort”. Editions L’Age d’Homme, Lausanne, 1977, p. 162-165.
Tradução de Roberto Mallet. – www.grupotempo.com.br)

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