Teatro Contemporâneo | Os Pioneiros da Dramaturgia Centrada no Ator
Texto: Cristina Tolentino
cristolenttino@gmail.com
O ator, obra de arte viva
A trajetória da arte do ator no séc. XX, resgata a importância e o lugar desse ator no espaço e no tempo da representação, enquanto um ser humano inteiro, presente, ativo, dinâmico, em movimento, em ação, em constante vir-a-ser, que cria novas maneiras de perceber o mundo e pensar a experiência humana – experiência material do ato de existir.
O ator – é ele mesmo, obra de arte viva. Por isso a necessidade, cada vez maior, em trabalhar o seu instrumento artístico, ou seja, seu corpo, sua voz, seus afetos, suas relações, seu conhecimento, sua criatividade e sensibilidade.
Uma formação constante e sistemática, um laboratório de pesquisa, experimentação e conhecimento. Eis a busca desses grandes mestres, que vêm revolucionar a arte teatral, tornando-a real sem ser realista, unindo disciplina e espontaneidade, técnica e fluidez de vida, corpo e mente, matéria e espírito.
François Delsarte
Nasceu em Solesmes (França) em 1811 e morreu em 1871.
Ator e cantor, Delsarte dedicou sua vida à observação e classificação das leis que regem o uso do corpo humano, como meio de expressão.
Delsarte se ateve, principalmente, a 03 tipos de observação:
- Como se exprimem os sentimentos humanos na vida real
- Pesquisa da estatuária antiga
- Estudo da anatomia humana
A partir destas observações, ele estabelece um conjunto de preceitos, que foram ensinados entre 1839 a 1859, em Paris, no curso chamado “Curso de Estética Aplicada”, em que participaram pintores, escritores, compositores, advogados, padres, atores e cantores.
Delsarte dizia: “O gesto é mais que o discurso. Não é o que dizemos que convence, mas a maneira de dizer. O gesto é o agente do coração, o agente persuasivo. Cem páginas, talvez, não possam dizer o que um só gesto pode exprimir, porque num simples movimento, nosso ser total vem à tona, enquanto que a linguagem é analítica e sucessiva.”
Os dois princípios fundamentais da teoria de DELSARTE são:
- O princípio da correspondência – “a toda função do espírito corresponde uma função do corpo e a toda grande função do corpo corresponde um ato espiritual.” É a unidade corpo/alma, que Delsarte busca recuperar. É o ser humano na sua totalidade.
- O princípio da Trindade – “os três princípios de nosso ser – a vida, o espírito e a alma formam uma unidade”.
DELSARTE distingue ainda três tipos de movimento:
As oposições – os movimentos de oposição são aqueles nos quais duas partes do corpo se movem ao mesmo tempo, mas em sentidos opostos.
“A oposição dá a um movimento sua expressividade máxima. Se para afirmar ou convencer levamos nosso braço e nossa mão à frente, o gesto é fraco, mas se, ao mesmo tempo, fizermos com o rosto um movimento para trás e recuarmos um ombro ou mesmo a cabeça, o gesto alcança toda sua intensidade, seu realce, sua autoridade.”
É o princípio da assimetria – uma lei estética bastante comum à qual muitos artistas recorreram, como Miguel Ângelo na sua pintura da Capela Sistina (os movimentos de Deus dando vida a Adão e de Adão, recebendo-a, nos mostra esta dinâmica da oposição).
A tensão das energias e o impulso da decisão são expressos quando se desenvolve, ao máximo, esta oposição de movimentos da qual todo o corpo participa.
Exercícios sobre os tipos básicos de oposição,
tirados do livro de Alfonse Giraudet (1895),
um aluno de François Delsarte.
O Paralelismo – é quando duas partes do corpo se movem ao mesmo tempo e na mesma direção. “O paralelismo indica a fraqueza. É o gesto da súplica e da oferenda.”
As Sucessões – são movimentos que percorrem o corpo todo e acontecem em cada músculo, cada osso, cada articulação. “Eles são a forma privilegiada para expressar emoções.”
Analisando várias seqüências de movimento, Delsarte assinalou que, no teatro, o gesto deve preceder a palavra.
Ele diz que a sucessão fundamental é a que, partindo do tronco, põe em movimento o ombro, depois o braço, o cotovelo, o antebraço, o pulso, a mão e os dedos, sendo que o impulso central mobiliza o corpo inteiro por ondas sucessivas, rigorosamente dirigidas e controladas.
Emile Jaques-Dalcroze
Músico, lecionou no Conservatório de Genebra (1892) e dedicou sua vida ao estudo das leis de expressão e do ritmo. Ele cria a ginástica rítmica, mas não como simples ginástica. “É preciso reabilitar o corpo e, ao mesmo tempo, reeducá-lo. A rítmica não é um fim em si, mas um meio para combater as nossas inabilidades, inibições e reencontrar uma harmonia perdida.”
Ilustração de certas fases do método currítmico de Dalcroze: a “antecipação” de movimentos é
claramente visível; os movimentos começam numa direção que é oposta à sua direção final. A
pesquisa feita por Emile Jacques-Daslcroze (1865-1900) sobre ritmo e movimento teve
considerável influência no teatro e especialmente na dança moderna, no fim do século XIX.
Dalcroze fala da unidade física e espiritual que a igreja destruiu, induzindo o homem a desprezar o corpo e a ver a beleza somente no espírito, no abstrato:
“é preciso estabelecer comunicações rápidas entre o cérebro que cria e analisa e o corpo que executa. É preciso reforçar a faculdade de concentração, é preciso canalizar as forças vivas do ser humano, disputá-las com as correntes inconscientes e orientá-las para um alvo que é a vida ordenada, inteligente e independente.”
Os exercícios desenvolvidos por Dalcroze são embasados na respiração. Com acompanhamento do piano, desenvolve exercícios de flexibilização, rotação, centra os pontos de partida do gesto, exercita os alunos a cantarem em ritmos cada vez mais difíceis e em todas as posições, possibilitando a descoberta do senso ritmo muscular, “que faz de nosso corpo o instrumento em que se representa o ritmo, onde os fenômenos do tempo se transformam em fenômenos do espaço.”
Buscar uma disponibilidade corporal e espiritual – este foi o objetivo de Dalcroze. “Ritmo é ordem e movimento – a expressão da necessidade mais íntima, da aspiração mais secreta. Espiritualizar o que é corporal e encarnar o que é espiritual.”
Adolphe Appia (1862-1928)
Appia colaborou com Jacques Dalcroze de 1906 a 1926, trazendo suas pesquisas referentes ao espaço e à luz. “Consciente do seu corpo, o aluno toma consciência do espaço, dos volumes.”
A encenação, segundo Appia, deve permitir ao ator explorar e integrar na sua representação tudo que é elemento cênico, fazer de cada um deles um agente da expressão teatral:
” Quanto mais a forma dramática for capaz de ditar com precisão o papel do ator, tanto mais o ator terá direito de impor condições à estrutura do cenário, pelo critério da praticabilidade; e, por conseguinte, tanto mais acentuado se tornará o antagonismo entre essa estrutura e a pintura, uma vez que esta se encontra, pela própria natureza, em oposição ao ator, e impotente para preencher qualquer condição que emane diretamente do ator.”
Adolphe Appia: Luz do Luar, da série de cenários Espaços Rítmicos.
Foto retirada do livro HISTÓRIA MUNDIAL DO TEATRO – Margot Berthold. Editora Perspectiva.
Appia constatou que a cenografia deve ser um sistema de formas e de volumes reais, que imponha incessantemente ao corpo do ator a necessidade de achar soluções plásticas expressivas.
Os obstáculos (sistema de planos inclinados, de escadas, de praticáveis), vão obrigar o corpo a dominar as dificuldades deles resultantes e a transformar essas dificuldades em trampolins para a expressividade. São os “espaços rítmicos”.
Também a luz deixa de ser apenas um instrumento funcional para assegurar a visibilidade do espaço cênico. A luz terá a função de esculpir e modular as formas e os volumes do dispositivo cênico, suscitando o aparecimento e o desaparecimento de sombras mais ou menos espessas ou difusas e de reflexos.
Appia busca multiplicar as possibilidades expressivas da luz, como instrumento essencial de animação do espaço cênico.
A grande contribuição de Appia para o teatro foi o seu empenho em substituir a imitação (cenário realista) pela sugestão (simbologia), buscando a unificação do espetáculo (ordenando, entrosando e articulando os elementos), que só poderá ser atingida, se o elemento-base da estrutura da encenação for definido e designado. E esse elemento é o ATOR. Só assim, segundo ele, poderemos fazer da encenação uma autêntica obra de arte.
Jacques Copeau
Copeau vai empenhar-se, no seu trabalho no Vieux-Colombier, em ressuscitar um teatro liberto das velhas convenções: “um teatro novo sobre alicerces intactos, e limpar o palco de tudo quanto o suja e o oprime.”
Tudo que distrai a atenção do essencial, tudo que é ornamento espetacular, é inútil e nocivo: “a encenação não é o cenário – é a palavra, o gesto, o movimento, o silêncio; é tanto a qualidade da atitude e da inflexão quanto à utilização do espaço.”
Copeau inclui a rítmica de Jaques-Dalcroze em seu projeto do Vieux-Colombier, buscando desenvolver não uma técnica em si, mas no sentido de criar um estado de espírito e uma disponibilidade muscular.
Indignado com as práticas do teatro comercial, ele deseja recuperar o homem-ator.
Em 1913, ele já sonhava com uma escola técnica para a renovação da arte dramática francesa. ” Será um local de comunidade, onde o aluno seguirá um treinamento.” Criar um grupo de trabalho para experimentar métodos de reeducação teatral, em que a formação corporal possa tornar-se sistemática – esta é uma busca dos homens de teatro neste novo tempo.
Copeau, em seu trabalho, torna o ator mudo temporariamente. Força-o a sentir de novo a necessidade de exprimir-se, depois a exprimir-se de outros modos, além da palavra, falar com palavras e sons rudimentares, pouco numerosos, mas justificados e essenciais. É o método da Improvisação.
Inspira-se na Comédia dell’arte. Tira os textos prontos do ator e o reconduz à pobreza do Canovacci*, buscando despertar a imaginação, desenvolver a capacidade de jogar e de inventar. No Vieux-Colombier os atores praticavam a ginástica rítmica, a esgrima, a acrobacia, a dança e o canto.
* Canovacci era um roteiro usado pelos atores da comédia dell’arte, a partir do qual criava-se o espetáculo. Não havia um texto pronto, acabado.
Charles Dullin
Dullin atuou com Jacques Copeau e fundou em 1921 o Atelier – um laboratório de pesquisa dramática, uma organização corporativa, onde ” o artista conheceria a fundo o instrumento de que ele deve servir-se.”
Também se inspirou, como Copeau, na comédia dell’arte, desenvolvendo exercícios de improvisação, que possibilitavam ao aluno, descobrir seus próprios meios de expressão.
Teve como base para os exercícios, as sensações dos cinco sentidos: “sentir antes de exprimir, ver antes de descrever o que viu, escutar e entender antes de responder. Daí nasce comparações, lembranças – sentimentos interiores se libertam e se expressam.”
Contra a voz na máscara, Dullin busca fazer com que a voz conserve seu caráter natural, podendo se colocar sozinha, através de exercícios de respiração e descontração.
Edward Gordon Craig (1872-1966)
A busca de Craig é penetrar no cerne do mistério teatral. Suas principais ideias estéticas são:
- Oposição formal ao realismo que fotografa a realidade, em vez de transmiti-la artisticamente. “O realismo é apenas exposição. A arte é revelação.”
- O ator não deve se esforçar para parecer bem em um papel, mas deve nos mostrar “como cada coisa é bela.”
- O teatro não se destina a nos mostrar a imagem da vida e dos males daqui, deve ” suscitar em nós a nostalgia do que não é deste mundo.”
- À palavra vida, incessantemente glorificada pelos realistas, Craig opõe a palavra morte. “O mundo desconhecido da imaginação é somente a morada da morte.”
- Busca da arte sacralizada, que representa deuses e heróis, não homens.
- Preconiza a atuação de marionetes e via nesta marionete um símbolo. A marionete, diz Craig, “pode ajudar o ator a se libertar das imitações de uma interpretação realista que só o leva a excessos e maneirismos.” Não via a marionete no sentido caricatural, mas no seu sentido cerimonial, ligado às suas origens ritualísticas ou às manifestações religiosas do Oriente. A marionete esfinge. Sonha com uma supermarionete, símbolo da divindade, sonha em ressuscitar uma cerimônia em louvor à criação. Num primeiro momento, Craig deseja substituir o ator humano por uma marionete, pois segundo ele, o ator traz emoções difíceis de serem controladas pelo seu excesso de egocentrismo.
- O teatro ideal para Craig, é o teatro que ele chama de durável, no qual o ator deve controlar o seu corpo para que o mesmo não seja afetado pelo seu ego. Por isso propõe a supermarionete, que será dotada de vida e paixão, mas rigorosamente controlada e despida de egoísmo. Neste sentido, o teatro clássico hindu é o que corresponde ao seu ideal: intérprete com técnica perfeitamente afiada, o código dirigindo a expressão e a espiritualidade. Ele pensa em suscitar um super-ator.
- Mais do que uma técnica eficaz, Craig sugere a necessidade de uma ética: renunciar à ambição pessoal, ao sucesso passageiro. “Seu objetivo não é se tornar um ator célebre, mas um artista de teatro.” Ele diz: “Se após cinco anos de palco você tiver sucesso, considere-se perdido. É preciso dedicar a vida inteira à busca.”
- Quer levar os atores a não ficarem presos à reflexão: ” não é pensando que se pode ver o céu, a gente o vê, nós o percebemos através de nossos sentidos. Sentido e alma em vez de cérebro, o meio mais elevado e não o mais baixo.”
- Teatro é gesto e movimento em dança.
Desenho para Macbeth, 1909
Craig cria sua escola em Florença. Mais que uma escola, Craig quer construir um laboratório experimental, onde o importante não é montar uma cena ou um espetáculo, mas formar gente de teatro.
Depois do ator se exercitar em várias disciplinas, vai descobrir “cientificamente” os princípios gerais, que vão permiti-lo montar todos os gêneros de peças.
A escola de Craig constituiu-se de alunos seniores e juniores. Os grupo dos seniores, eram em número de vinte, com idade entre 20 e 40 anos. Um grupo composto de jovens músicos, pintores, arquitetos, eletricistas. Participavam da pesquisa e eram professores dos juniores.
Os juniores, alunos pagantes, faziam estágio de uma temporada, durante a qual trabalhavam a voz e o movimento. A preocupação não era ensiná-los a representar. Estudavam várias disciplinas e depois passavam por um exame eliminatório. Os aprovados continuavam na escola por um período de dois anos e podiam então, escolher uma especialização.
Na escola de Craig, os alunos exercitavam ginástica, dança, mímica, esgrima, voz. Iniciava nos planos de cenário, na construção de maquetes, na iluminação. Tinham aulas de história do teatro e história da marionete, como também aprendiam a manipula-la.
Craig ajuda os alunos os alunos a descobrirem o ser humano que há neles, mas exige que ultrapassem a sua personalidade. ” O artista morre por sua arte.”
Electra, 1905
Além desta busca de recuperar o homem-ator ou o superator, Craig veio revolucionar o espaço cenográfico. Suas pesquisas foram compostas de reflexões teóricas, de projetos, de maquetes e de realizações cênicas efetivas.
Ele propõe a nudez do espaço, o jogo do claro-escuro e rejeita qualquer decorativismo. Um espaço em constante mutação, através do jogo conjugado da iluminação e de volumes móveis.
Craig propõe escadas, planos superpostos, biombos (screens ) não figurativos, feitos de tecido ou de madeira. “Acima desses biombos o teto parece anular-se, onde se estendem misteriosas zonas de penumbra. A luz passa a intervir no ritmo do espetáculo.”
Craig foi muito marcado pela teoria wagneriana do “drama musical do futuro”, que preconiza uma nova arquitetura teatral como local e instrumento da fusão de diferentes elementos que integram o espetáculo: “poesia, música, pintura, arte do ator. Aos olhos de Craig essa fusão exige não apenas um espaço adequado, mas também um condutor capaz de realizá-la: o régisser (diretor), que deve intervir em todos os níveis do espetáculo.
Uma teoria cenográfica que se aproxima das propostas de Appia: “o trabalho do cenógrafo – ou melhor do régisser – não consiste em representar o real, nem em decorar o palco, mas em inventar uma estrutura que utilize as três dimensões do palco e consiga criar uma contrapartida visual das tensões e do dinamismo específicos da obra encenada.”
São estes grandes pensadores e mestres do teatro que nos abrem as portas para um novo tempo teatral: uma arte centrada no ator e na essência do espetáculo. Um ritual onde todos podem participar, desde que sejam iniciados.
Um ofício, em que o importante não é fazer sucesso, mas a construção diária, persistente, generosa do nosso ser artístico.
Na continuidade da nossa pesquisa, falaremos sobre Stanislawski, Antonin Artaud, Grotowski, Peter Brook, Eugênio Barba e Tadeusz Kantor.