Blues | Nascimento do Blues
Texto: Hamilton Corragem
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Diário de Charlotte Forten
É no diário de Charlotte Forten que aparece pela primeira vez o termo “Blues”.
Charlotte era uma negra nascida livre no Norte, que tinha estudado e se tornado professora. Depois de alguns anos de ensino no estado de Maryland, decidiu, a pedido do proprietário, ensinar a ler os escravos de Edito Island, na Carolina do Sul e aí morou de 1862 a 1865.
Ela manteve um relatório quase que diário desses anos, notando sobretudo as dificuldades de toda ordem que encontrava em suas obrigações.
No domingo de 14 de dezembro de 1862 escreveu, transtornada pelos gritos que subiam dos bairros de escravos: “Voltei da igreja com o Blues. Joguei-me sobre meu leito e pela primeira vez, desde que cheguei aqui, me senti muito triste e muito miserável”.
Ela não define as relações eventuais do Blues com qualquer expressão musical mas nota, todavia, alguns dias mais tarde (18 de fevereiro de 1863), falando da canção Poor Rosy:
“Uma das escravas me disse: Gosto de Poor Rosy mais do que de qualquer outra canção, mas para cantá-la bem é preciso estar muito triste e com o espírito inquieto”.
Não há nenhuma dúvida que esses termos definem o humor necessário ao Blues, como testemunham dezenas de entrevistas de artistas.
Se Poor Rosy, tal como a conhecemos através de algumas versões gravadas depois de 1920, não é propriamente um Blues mas uma espécie de balada bem ritmada, e se sabemos que o Blues provavelmente não existia na época em que Charlotte Forten se encontrava em Edito Island, o espírito do Blues em si já existia, e o termo “Blues”, com todas as suas conotações depressivas e de fossa, certamente era muito difundido entre os negros.
É significativo que Charlotte Forten não sentisse a necessidade de explicitar o termo que acabava de empregar, sendo que fez isso numerosas vezes para outras palavras.
Se o termo “Blues” em seu sentido atual parece ter sido de uso corrente em meados do século XIX, a origem desse nome é incerta.
Não temos conhecimento da existência de nenhuma explicação escrita quanto ao nascimento desse termo antes de 1960 e as primeiras pesquisas científicas sobre esse gênero musical.
Mesmo um folclorista tão advertido como Alan Lomax, que gravou centenas de canções e de entrevistas com músicos negros para a Biblioteca do Congresso nos anos 30 e 40, empregava o termo “Blues” como uma palavra da linguagem corrente, sem jamais aprofundar seu sentido etimológico.
A música dos negros durante a escravidão
A atriz inglesa Fannie Anne Kemble, que casou-se com um rico plantador da Geórgia, nos dá uma ideia do que era a música dos escravos negros em seu Diário de uma estadia em uma plantação da Geórgia (1938-1939):
“… (as canções dos negros) são… extraordinariamente selvagens e difíceis de relatar. A maneira pela qual o coro explode entre cada frase da melodia cantada por uma voz solista é muito curiosa e eficaz”.
Ela define um pouco mais a função desses cantos: ritmar o trabalho e fazer com que pareça mais leve.
0 que permite ao congressista Daniel C. De Jarnette, voltando em 1860 de uma viagem às plantações do Sul onde ouvira escravos cantando durante o trabalho, notar, sem ironia, em um de seus discursos no Congresso:
“Os negros das plantações cantam trabalhando… Eu afirmo… há mais alegria de viver e felicidade sem nuvens entre os escravos do Sul do que em qualquer outra população laboriosa do globo”.
As Notas sobre o estado da Virgínia de Thomas Jefferson são também extremamente interessantes, pois o autor nelas descreve de modo detalhado os instrumentos de música usados pelos negros em meados do século XIX, em particular o banjo, que parece ter sido uma adaptação sutil de vários instrumentos de origem africana: o fiddle, esse violino popular de origem irlandesa que muitos escravos negros parecem ter aprendido a tocar.
É claro que não há traços de violão na descrição de Jefferson, o que não é de surpreender, pois, exceto nos estados do Sudoeste (Texas, Califórnia), sob influência espanhola, esse instrumento só fez realmente sua aparição na América no início do século XX.
0 que pode surpreender muito mais é o fato de que Jefferson não revela nenhum traço de tambores entre os escravos negros.
0 Black Code aplicado pelos plantadores do Sul estipula que os escravos não têm o direito de tocar tambores ou flautas que “poderiam ser usados, tal qual na África, como meios de linguagem e de comunicação… e poderiam servir para incitar à revolta”.
0 trabalho nos campos
Esse “Código negro” nos esclarece de maneira muito precisa as possibilidades de expressão que tinham os escravos: os negros arrancados da África eram considerados unicamente como um capital humano destinado ao trabalho.
A única chance de sobrevivência para o escravo negro era ser uma boa ferramenta de trabalho. Toda capacidade de qualquer natureza de que fazia prova o escravo era usada pelo senhor se pudesse servir ao trabalho. Isso aplica-se perfeitamente à música: o canto tradicional africano (com um solista e a resposta em coro do grupo) que ritmava os trabalhos do campo na África do oeste foi, parece, transposto tal e qual para as plantações americanas. Trata-se, é claro, de work-songs, empregadas ainda em torno de 1960 nas penitenciárias para negros no Sul.
A religião
Mas é claro que uma sociedade tão profundamente cristã como a dos plantadores escravagistas do Sul não podia confessar francamente essa utilização do homem negro unicamente como animal de carga.
Depois de durante muito tempo considerarem-se os negros como meio-macacos, resolveu-se evangelizá-los em massa, levando-lhes assim a felicidade de crer em Jesus.
Bem depressa, e provavelmente desde o início do século XIX, o canto religioso tornou-se um dos meios de expressão privilegiados (porque, é claro, autorizado) do gênio africano.
Com uma considerável capacidade de adaptação, os escravos negros transformaram os hinos batistas e metodistas em cantos que misturavam as origens africana e europeia e que se espalharam no mundo inteiro sob o nome de negro-spirituals.
Os negros deram também um sentido muito particular aos temas inspirados na Bíblia, e na maioria no Antigo Testamento.
Desde 1859, o reverendo David Mac Rae, de origem britânica, visitando o “Sul profundo”, nota:
“Há nos cantos religiosos dos escravos negros uma mistura de profunda tristeza e de alegria fervorosa pelo Paraíso, que sugere estarem apressados por reencontrar Jesus, para serem enfim livres”.
Mas, se esse desejo de morte está efetivamente presente com frequência, não se pode negar que “atravessar o Jordão” significava também tornar-se livre.
Em todo caso, o relato dos sofrimentos e penas do povo judeu no Antigo Testamento tiveram uma ressonância muito profunda entre os escravos, que identificaram-se visivelmente com os hebreus fugindo do cativeiro no Egito para a Terra Prometida.
Seria preciso ser singularmente surdo para não discernir em um dos negro-spirituals mais célebres, um apelo à emancipação:
Go down Moses, way down in Egypt-s land / Tell old Pharahoh, let my people go. (“Desça, Moisés, desça às terras do Egito / Diga ao velho faraó que deixe meu povo ir-se“).
A dança
Enfim, é evidente que, se alguns plantadores martirizavam alguns de seus escravos’, outros – sem dúvida a maioria – tinham uma atitude benevolente e paternalista, aliviando a consciência enquanto manejavam uma mão-de-obra preciosa e cada vez mais cara no decorrer do século XIX (a importação de escravos, declarada ilegal em 1808, continuou a ser contrabandeada até a guerra civil, mas a preços notoriamente mais elevados).
Os testemunhos não-suspeitos de complacência abundam a respeito de relações amistosas entre brancos e negros nas plantações. As famílias de escravos frequentemente habitavam pequenas casas individuais disseminadas pela plantação e rodeadas por uma horta individual que era de sua propriedade.
Da mesma maneira, a noite de sábado era frequentemente reservada aos cantos e danças.
Ainda uma vez, a mistura das danças tradicionais africanas trazidas pelos negros com as danças europeias que os escravos tinham ocasião de ver e ouvir iam resultar nessa “dança das plantações” (plantation dance) na qual é preciso ver o ancestral direto de numerosas danças surgidas na América nos séculos XIX e XX, entre as quais Jump Jim Crown, transcrita por Thomas Rice em 1828, é o arquétipo.
Tornada uma das danças favoritas dos ministrel shows, no decorrer da qual um branco disfarçado de negro e tocando banjo imitava a atitude destes para fazer rir, o tema “Jim Crow” virou sinônimo de segregação e de racismo.
Um “Jim Crow” designa, na linguagem do Sul, um branco que tem esses sentimentos.
Afirmação de uma cultura negra depois da emancipação.
Eis então um esboço da música americana praticada, pelos negros no tempo da escravidão. Com toda evidência, a herança africana é a força dominante desse gênero musical, o que não significa que a contribuição europeia seja negligenciável.
Quaisquer que tenham sido as formas que essa música tenha tomado em solo americano – worksongs, negro-spirituals ou árias de dança – e se bem que essas formas tenham, é claro, desempenhado um papel muito importante na elaboração do Blues, não se pode em nenhum caso dizer que o Blues existia no tempo da escravidão.
Os testemunhos escritos e orais que pudemos consultar ou recolher nos fazem pensar, ao contrário, que o Blues não nasceu da emancipação em si mesma mas de transformações da música negra sob o efeito das novas condições sócio-econômicas criadas por essa emancipação.
O nascimento do Blues propriamente dito situar-se-ia então, muito provavelmente, no fim do século XIX ou na aurora do século XX.
Desmembramento de grandes propriedades
O fim da guerra civil e a ocupação do Sul pelos nortistas levaram em ampla medida ao desaparecimento das plantações de um só proprietário e ao desmembramento em pequenas fazendas.
Entretanto, a perspectiva de uma redistribuição de terras às vezes evocada por alguns políticos ianques antes e durante a Guerra de Secessão (40 acres e uma mula para cada escravo negro) jamais se materializou realmente.
O que mudou foi a estrutura da exploração agrícola: os antigos escravos tornaram-se trabalhadores assalariados.
Em princípio, nada mais se opunha à ascensão de um negro à propriedade da terra, e um movimento muito lento mas contínuo produziu-se nesse sentido, em particular nas terras virgens ou em algumas plantações cujo proprietário havia ostensivamente favorecido as tropas da Confederação, que foram desmanteladas depois da guerra civil.
Mas, frequentemente, os negros tinham a possibilidade de comprar a terra através de organismos criados para a ocasião e geralmente constituídos de aventureiros, fraudadores e especuladores.
Por outro lado, a imensa maioria dos negros emancipados não tinha evidentemente nenhuma possibilidade financeira para tal empreendimento.
Com efeito, os escravos negros foram em uma ampla maioria empregados como arrendatários, com o direito de cultivar um pequeno pedaço de terra em troca de deveres exorbitantes: 80 a 90% da colheita devida ao proprietário e uma divida para toda sua vida – e a de seus herdeiros – para com o General Store mais próximo (o que queria dizer várias milhas de distância e às vezes várias dezenas de milhas), frequentemente também possuído pelo mesmo proprietário da terra.
Mas as correntes de escravos trabalhando uns amarrados aos outros e retomando em coro as worksongs estavam desmanteladas.
Em seu lugar se desenvolve o canto de um cultivador solitário guiando sua mula ou puxando seu arado, saudando o assovio de um trem longínquo ou o barulho do vento nas árvores, improvisando sem outra restrição que não a tradição aninhada no âmago de seu inconsciente.
Inúmeros testemunhos atestam a onipresença desses cantos de fazendeiros negros às voltas com seus trabalhos agrícolas no fim do século.
Às vezes, um som longo e tenso chamava o arrendatário do campo vizinho que lhe respondia em contracanto.
Esses chamados tomaram o nome de hoolies, arhoolies ou, mais frequentemente, hollers.
Desenvolvimento de um subproletariado industrial
Nem todos os negros, contudo, tornaram-se arrendatários: aliás, com a alta natalidade registrada depois da emancipação, não se tinha necessidade de todos esses braços.
Uma parte deles procurou trabalho em pequenas fábricas (metalúrgicas, refinarias) que começavam a despontar ao redor das grandes cidades do Sul, ou como lenhadores (rachadores de lenha, desmatadores), ou nas fábricas de terebentina que eram criadas perto de jazigos florestais, em canteiros de obras de grandes trabalhos (construção de estradas, de vias férreas, de barragens) ou ainda como barqueiros e também, e talvez sobretudo, nos entrepostos de algodão ou de usinas têxteis.
Assim se desenvolveu, da Guerra de Secessão à Primeira Guerra Mundial, uma corrente de migração contínua das plantações para as cidades do Sul, significando uma mudança de atividade para os negros e preparando-os para a grande migração para o Norte que iria começar verdadeiramente depois de 1918.
Os que escolheram (ou tiveram de) abandonar os trabalhos agrícolas formaram rapidamente um subproletariado miserável, morando em cabanas insalubres às portas das cidades, corroídos pela subeducação, pelo alcoolismo, pelo amontoamento de famílias e pela promiscuidade, pela ausência de perspectivas de futuro.
O lenhador, o trabalhador das matas, o construtor de diques, o barqueiro continuaram (ou reencontraram) a tradição das worksongs, modificadas pela dos hollers já largamente implantada nas fazendas que acabavam de deixar.
0 aparecimento dos músicos profissionais
Por outro lado, a existência de um subproletariado semi-urbano criava uma extraordinária procura de divertimentos: lojas de bebidas, salas de jogo, espeluncas clandestinas, casas de prostituição, tendo sempre música.
Muito rapidamente, apareceu uma categoria social nessas novas comunidades negras: a do músico cego ou aleijado, inapto para o trabalho manual, “mau negro” resmungando contra o duro trabalho da cultura do algodão ou simplesmente infringindo as leis em sua comunidade de origem e fugindo à justiça.
Frequentemente itinerante, o músico, contador de histórias, cantor de canções – songster, como começou a ser chamado – passa de vilarejo em vilarejo, de campos florestais a barragens em construção, distraindo trabalhadores e contramestres, trabalhadores agrícolas e florestais, em troca de pouso, comida e uma garrafa de uísque.
0 cantor tocava também um instrumento para marcar o ritmo e fazer dançar, mas um instrumento que podia levar em suas peregrinações – inicialmente um banjo ou um violino mas logo, e cada vez mais à medida que o século XX avançava, uma guitarra leve, prática e barata muito mais completa que o violino e muito mais flexível que o banjo.
É claro que as casas de jogo e os prostíbulos, e logo os cinemas mudos, tinham frequentemente seu músico particular, bem vestido e bem retribuído, usando piano para tocar os temas trazidos dos campos assim como as baladas em voga nas grandes cidades do Norte, que ele adaptava à sensibilidade negra, usando principalmente e urna vez mais uma abundância de Blues-notes obtidas com dificuldade, enrolando panos em alguns martelos de seu piano.
Isolamento dos negros na sociedade sulista
Enfim, a supressão da escravidão evidentemente modificou de forma considerável o lugar dos negros na sociedade sulista.
As intenções generosas da Reconstrução e da ocupação do Sul pelas tropas ianques no imediato pós-guerra permitiram efetivamente aos antigos escravos, as vezes, o acesso a um certo nível de educação e o exercício de um mínimo de direitos cívicos, entre eles o direito de voto.
Mas em 1877, as últimas tropas nortistas deixaram o estado de Luisiana, colocando fim a uma ocupação muito difícil e freando também o empreendimento de reconstrução que revelou-se então um fracasso total.
A ideia de uma reconciliação necessária entre o Norte e o Sul para construir uma nação veio sem dificuldades se fazer nas costas dos negros.
Subcidadania
Para os negros, a evacuação das tropas nortistas tomou a feição de um desastre.
0 espírito de revanche dos brancos sulistas, principalmente dos mais extremistas agrupados em associações secretas, racistas e violentas, como a Ku Klux Klan ou Os Cavaleiros do Branco Camélia, veio se exercer imediatamente e com ferocidade sobre os antigos escravos promovidos a “cidadãos iguais”.
Os jornais locais da época narravam – frequentemente nas notas de pé de página – um número estarrecedor de linchamentos (832 só no ano de 1883 no condado de Tallahatchie, no Mississipi), interditando aos negros o exercício real de seus direitos e sobretudo marcando claramente a superioridade branca.
Em 1883, a Suprema Corte declarava “inconstitucional” a 14 emenda, que permitia aos negros apelar nessa jurisdição e, a partir de 1890, o Estado do Mississipi interditou efetivamente aos negros, isto é, a 60% da população do estado, o direito de voto.
Em 1910, a maior parte dos estados do extremo Sul e mesmo do Velho Sul (como a Virgínia, apesar de ser vizinha do distrito de Colúmbia, sede da capital federal) tinha adotado legislações constitucionais negando qualquer direito político aos negros.
Segregação
Paralelamente, importantes medidas de separação das raças em todos os lugares públicos eram implementadas, não sem eventuais resistências violentas da parte dos negros.
Em 1896, a Suprema Corte declarava constitucionais as leis segregacionistas, sob o pretexto de que asseguravam “comodidades iguais” às duas raças.
Mesmo sendo verdade que a maior parte dos estabelecimentos e dos serviços públicos do Sul estava então longe de ter uma aparência luxuosa, a segregação significava para os negros escolas mais pobres, hospitais mais desguarnecidos, transportes mais caóticos, a certeza, de qualquer forma, de ter sempre os prédios mais miseráveis e sórdidos do que os dos brancos.
A crise econômica geral do começo da década de 1890, que atingiu duramente a economia de monocultura dos estados do Sul, fez até mesmo aparecer, em alguns casos, como muito onerosos os arrendamentos concedidos aos negros depois da guerra civil.
Em 1892, o estado do Mississipi, inovando uma vez mais na matéria, permitiu às penitenciárias emprestar detentos às obras e oficinas que os requisitassem.
Era assim que se encontravam nas plantações do Sul, menos de 30 anos depois da guerra civil, trabalhadores negros acorrentados uns aos outros e supervisionados por “mestres” armados de chicotes.
Pouquíssimas pessoas se interessavam em saber a sorte definitiva desses prisioneiros, que eram detidos cada vez mais pelos motivos mais fúteis e segundo os pedidos recebidos de mão-de-obra gratuita.
Essas sinistras chain gangs tornaram-se assim um elemento essencial da “vida” dos negros.
Assim, o grande historiador John Hope Franklin não hesitou em escrever:
“… Por mais de um aspecto, a vida dos negros do Sul no início do século XX era mais difícil e mais precária que nos tempos da escravidão”.
Esmagados por legislações racistas, desprezados em todos os atos da vida cotidiana, excluídos dos estabelecimentos brancos, até mesmo das salas de espetáculos, de dança e das igrejas, os negros precisariam, para sobreviver espiritualmente, redefinir uma cultura que lhes fosse própria.
Nascimento de uma cultura negro-americana
Na minha opinião, foram verdadeiramente essa situação social degradante e esse isolamento cada vez maior que afirmaram, do modo espetacular que conhecemos, a cultura negro-americana.
Se as tentativas de inserção cívica e social dos negros na sociedade americana depois da guerra civil tivessem sido levadas com maior força e convicção e mais aceitas pelos brancos do Sul, não há nenhuma dúvida de que a cultura negro-americana teria sido notavelmente menos particular e original.
Por fim, foram claramente menos as tradições africanas – é claro que em ampla medida subjacentes mas, não podemos esquecer, totalmente apagadas, esmagadas desde a origem e, aliás, frequentemente mal-adaptadas às condições sócio-econômicas americanas – que a vida pós-guerra civil, verdadeiramente americana, dos negros, feita de isolamento e de repressão social, que forjou uma identidade tão particular para o povo negro americano.
Sem querer negar o claro e determinante dote africano, parece-nos todavia muito mais judicioso dar a essa cultura o nome de “negro-americana” que o de “afro-americana”.
A alma negra
Entre 1895 e 1900, floresceram seitas religiosas negras em todo o Sul e Sudoeste, das quais a mais célebre era a dos pentecostais.
Essas novas Igrejas negras eram animadas por um fervor religioso extraordinário que encontrava sua expressão natural nas gospel songs, herdeiras diretas dos negro-spirituals do tempo da escravidão e que veiculavam uma força de contestação e de afirmação de sua própria cultura na mesma proporção em que os brancos não se preocupavam mais em evangelizar as “almas negras”, definitivamente rechaçadas em um extraordinário vazio sanitário mental.
Assim se desenvolveu a ideia de que, por vários aspectos, o homem negro é melhor que o homem branco e surgiram notáveis preachers negros, verdadeiros guias espirituais da comunidade negra, a quem se escutava com atenção e a quem às vezes se venerava.
Também cada vez mais frequentemente, o preacher aumentava a força de sua mensagem ao entregá-la cantando e tocando guitarra ou piano.
Aparecimento da balada negra: o Blues
Paralelamente, o songster elaborava, sobre o modelo das baladas populares de origem anglo-saxônica, verdadeiras canções de gesta, que falavam de homens negros a homens negros.
Tal acontecimento, tal personalidade, tal bairro de tal cidade, tal marginal lutando contra a sociedade (… dos brancos) davam matéria a uma balada que era divulgada de vilarejo em cidade, de acampamento de trabalhadores em bordel, que era retomada, aumentada, aperfeiçoada, adaptada à personalidade de cada novo contador.
Frankie and Albert (que se tornou Frankie and Johnnie), Colombus Stockade Blues, Duncan and Brady, House of the rising sun, Ella Speed, Railroad Bill, Lining track, Pick a bale of cotton, Going down the road feeling bad são alguns dos títulos que datam dessa época e que, retomados por inúmeros cantores negros e depois brancos, chegaram até nós em versões arranjadas segundo o gosto das épocas sucessivas.
Quanto à mais célebre balada americana de origem negra (e talvez de todas as origens confundidas), John Henry, Alan Lomax coletou 147 diferentes versões!
Como se lembrava Furry Lewis, que conheceu bem toda essa época:
“… o songster ia à igreja, e o pregador vinha dançar no vilarejo, o jovem músico vencia ao tornar-se pianista em um dos bares de Memphis e freqüentemente, com a idade, tornava-se pregador”.
Pouco a pouco, essas grandes atividades musicais dos negros americanos se influenciaram mutuamente, imbricaram-se umas sobre as outras, dando um embrião de codificação, uma espécie de “regra de ouro da balada negra” que, alguns anos mais tarde, o disco veio reforçar e depois estratificar.
Foi assim que em algum lugar do século XX – do fazendeiro solitário dedilhando seus hollers, chaing gangs de prisioneiros perpetuando os sotaques das work-songs do tempo da escravidão, do pregador inflamando as almas dos fiéis com a ajuda de sua guitarra, do pianista de casa de jogo martelando suas teclas para que sua clientela dançasse e do cantor itinerante disseminando suas baladas – surgiu o Blues.