EUGÊNIO BARBA E O TEATRO ANTROPOLÓGICO
6. TREINAMENTO
"Depois de termos trabalhado durante anos juntos, por muitas horas ao dia, não são mais as palavras, mas talvez só a minha presença que pode dizer alguma coisa". (Eugênio Barba)
Qual é o seu motor pessoal? Esta é uma pergunta essencial na experiência teatral de Eugênio Barba. Ele diz que é esse motor pessoal que se tem de buscar por trás das ações e das escolhas das pessoas de teatro. Esse motor pessoal é a "temperatura." Não adianta ter boa vontade, mas carecer de fora motriz. Esse motor está em nosso interior. Não é uma idéia ou uma pessoa, mas compromete cada um na sua totalidade, até as raízes mais profundas de si mesmo.
O treinamento é entendido como aprendizado e pesquisa. O corpo é o material desta pesquisa: "o corpo é meu país". Como diz Barba: "o único lugar no qual eu sou sempre: não importa onde eu vou, estou sempre em mim, sempre em meu país. Nunca estou no estrangeiro, nem no exílio, quando não estou separado do meu corpo." Quando Barba diz corpo, está dizendo desta parte da alma que pode ser percebida por nossos cinco sentidos, a respiração vital, o pneuma, o eu total, os mistérios das potencialidades da vida que encarnamos.
Neste sentido, o treinamento é a procura desta cultural individual (no sentido de indivíduo e não de individualismo) e única de "nosso país". E para isto é necessário tirar os condicionamentos e os reflexos com os quais estamos acostumados e nos permitir descobrir nossas possibilidades. "O que chamamos de espontaneidade não são mais que reflexos condicionados, reações que realizamos sem nos darmos conta, automatismos que nos atam e dos quais não podemos nos livrar", diz Barba. |
Treinamento Iben Nagel Rasmussen |
Treinamento Torgeir Wethal |
O treinamento vai fazer surgir uma arquitetura de tensões, diferentes da técnica cotidiana. Uma rede de tensões que se manifesta no ator, restituindo a unidade do espiritual e corpóreo, do masculino e feminino, do repouso e do movimento. Barba exemplifica esta experiência da seguinte forma:" existe uma segurança que é resultado da inércia, da entropia e existe uma segurança que é resultado do dinamismo de forças contrárias, das tensões que se confrontam. Existe a segurança de um monte de pedras esparramadas pela terra. E a segurança do montão de pedras que, através de forças opostas, elevam-se para as alturas, convertendo-se, assim, em arquitetura. A arquitetura ajuda-nos a visualizar esta qualidade das oposições, das tensões, que são as pulsões e o coração de tudo que está vivo. Os componentes básicos das catedrais são pedras, cujo peso as destinaria a cair na terra. Imprevisilvemente, estas pedras parecem não ter peso, aéreas, como se tivessem uma espinha dorsal para cima, com uma intensidade, uma voz que canta, se eleva, voa. É este o segredo da arquitetura, mas também da "vida" do ator: a transformação do peso e da inércia, por meio do jogo das oposições, em energia que voa. O teatro, como a arquitetura, é saber descobrir a qualidade das tensões e modelá-las em ações". Já dizia Gordon Craig: "o teatro é uma arquitetura em movimento.".
O treinamento busca criar esta nova arquitetura de tensões no corpo do ator, uma nova tonicidade. E neste treinamento existe um fator objetivo e um fator subjetivo.
Fator objetivo: autodisciplina, rigor, exercícios, constância.
O equilíbrio entre o fator objetivo e subjetivo "vai decidir a duração do trabalho em grupo, definindo de maneira in-dividual e social, o ator e o grupo com o qual trabalha".
Barba fala de treinamento e não de escola, pois acredita que o treinamento é um encontro com a realidade que se escolheu, "qualquer coisa que se faça, faça-a com todo o seu ser.".
Neste sentido ele distingue "período de aprendizagem" e "relação de aprendizagem":
O segundo se refere a uma relação de aprendizagem, na qual uma só pessoa se coloca diante de nós para nos transformar em in-divíduos, nos ajudar a encontrar o "nosso país". Barba nos diz que esta relação "se nutre de amor..." porém, "amor não é só harmonia adocicada. É também aversão repentina, resistência, abandono, desejo de libertação, sensação de afogamento e vontade de entrega total, sem defesa. Amor é tudo que não é morno, é tensão." É a figura do mestre que nos guia ao encontro de nossas próprias respostas. "Um mestre, cuja voz se mistura à voz dos mortos, que nos respondem com nossas palavras."
Barba fala das tradições teatrais, tanto no Oriente como no Ocidente. Estas tradições que elaboram normas para o comportamento dinâmico do ator e que chamamos de codificação. Este trabalho tem como meta sobrepujar o natural, o espontâneo, o automatismo e a construção de uma nova tonicidade muscular: um corpo dilatado. "Matar o próprio corpo", a cultura que o modela e renascer através de novas tensões com a totalidade de suas possibilidades de irradiar vida e de contagiar o espectador. Barba dia que "mata-se o próprio corpo, quando se aprende a utilizá-lo de maneira diferente: uma nova maneira de estar em pé segundo outro eixo de equilíbrio, a caminhar, a locomover-se segundo regras que negam as normas de comportamento cotidiano, como no Teatro Kathakali indiano, a mímica de Decroux, o balé clássico Khon tailandês, o Teatro Nô, o Teatro Kabuki. Esta passagem revela o ator e faz com que o público perceba o bios cênico, uma expressividade anterior à vontade de ser."
"Os anos de aprendizado, o treinamento", diz Barba, "permitem ao ator romper as correntes que o atam a um público particular de teatro, linguagem ou cultura. Em outras palavras: permitem ao ator se especializar sem estar especializado"... "a busca de uma técnica pessoal, que é a recusa de toda técnica que especializa. Uma técnica pessoal capaz de modelar nossas energias, sem permitir que se congelem nessa modelagem. É uma busca de uma temperatura própria". É o caminho da recusa: a busca de estar sempre em transição, de "não se afundar em um território especializado".
Para manter esse corpo-em-vida do teatro, é necessário, segundo Barba, alimentar-se de três órgãos.
O primeiro é o órgão do esqueleto e da espinha dorsal, da biologia. É o corpo-técnico que se afasta dos automatismos e do condicionamento da vida cotidiana. É o órgão cuja respiração revela o bios do ator em uma fase pré-expressiva, antes que queira expressar algo. Podemos estudar e analisar esse órgão, desenvolvendo-o conscientemente e transmitindo seu conhecimento aos outros.
O segundo é o órgão da u-topia, do não-lugar, que reside nas entranhas e no hemisfério direito do cérebro. São as bússolas e o superego que o mestre ou os mestres implantaram em nós, durante a passagem da técnica cotidiana para a técnica extracotidiana do teatro. É o sentido, o valor, o imperativo categórico que damos, individualmente, ao nosso ofício. A respiração deste órgão faz com que a técnica se afirme e chegue a uma dimensão social e espiritual. É o ethos do teatro, sem o qual qualquer técnica é somente ginástica, destreza corporal, divisão em lugar de unidade. Também sobre este órgão podemos estar atentos e vigilantes, protegê-lo e transmiti-lo.
O terceiro órgão não se pode pegar. É a temperatura irracional e secreta que torna incandescente nossas ações. Poderia chamar-se "talento". Eu o conheço sob outra forma: uma tensão pessoal que se projeta em direção a um objetivo, que se deixa alcançar e que novamente escapa; a unidade das oposições, a conjunção das polaridades. Este órgão pertence ao nosso destino pessoal. Se não o temos, ninguém pode nos ensinar". É o que Barba chama de "motor pessoal". É esse "motor pessoal", essa temperatura, que se tem de buscar por trás das ações e das escolhas das pessoas de teatro.
Qual é o seu motor Pessoal?
Cristina Tolentino ( cristolenttino@yahoo.com.br ) |