ANTONIN ARTAUD - TEATRO: UM ATO TOTAL |
5. CONCLUSÃO
As colocações de Artaud não são apenas visões de um grande poeta ou visionário. Ele nos coloca em contato com o verdadeiro teatro, enquanto ritual e mágico, porque nos transforma e faz ganhar alguma coisa àqueles que nos vem assistir, tornando infinitas as fronteiras do que chamamos realidade e onde o homem impavidamente torna-se o senhor daquilo que ainda não existe e o faz nascer. Artaud escreve com sua própria carne ("lá onde outros propõem obras, eu mostro o meu espírito"), por isso só podemos entendê - lo melhor se experimentamos os seus escritos na ação concreta e com o nosso próprio corpo. Foi assim que, aos poucos, me aproximei do universo artaudiano e como ele, tenho buscado construir as bases materiais da arte teatral como uma linguagem no espaço e em movimento, onde a poesia só poderá ser eficaz se for concreta, se produzir alguma coisa através de sua presença ativa em cena. Uma trajetória, na qual o importante não é assentar-se no que foi acumulado, não é capitalizar as habilidades técnicas e as teorias, nem passar por provas de genialidade ou de talento divino, mas no enfrentar o desafio diário em abraçar os seus limites, as suas precariedades, as suas contradições, transformando-os em matéria expressiva. Uma arte em vida, dinâmica, em movimento, em ação. A procura de uma representação habitada por marcas de sua própria história, gravada em sua memória, escrita em sua própria carne. Um trabalho orgânico, onde o ator coloca a sua humanidade não de maneira desatinada e descontrolada. Uma matemática criadora, embasada por uma técnica que garante qualidade, rigor, precisão e que vai possibilitá-lo locomover-se, construir-se e se tornar uma presença ativa em cena, onde o ator possa ser, ao mesmo tempo, material e organizador de seu trabalho. Ele deve ser um compositor a cada dia, esculpindo e compondo a sua obra: ele mesmo, obra viva do teatro. Isto exige um ato de extrema generosidade, pois requisita do ator que ele seja um artesão apaixonado pelo seu ofício, criando novas maneiras de perceber o mundo e pensar a experiência humana - experiência de recuperação material do ato de existir. Retomo alguns princípios artaudianos que, aliás, só fui compreender mais claramente, na medida em que os mesmos se fizeram ação. Quando Artaud diz que o teatro não é imitação da vida, mas duplo da verdadeira vida, aquilo que está antes da forma, um caos que se organiza em meio a conflitos, em meio às forças que se jogam umas contra as outras, uma matéria em ebulição, um vir a ser...todas essas colocações me levaram a investigar o processo do ator, anterior a qualquer representação, ou seja, toda a preparação do ator para que ele possa, através de meios seguros, trazer à luz do dia, verdades que de outra forma, permaneceriam ocultas. O ator está comprometido com a verdade e não com a simples realidade. Assim, é necessário que ele possa, durante o seu processo de formação, entrar em contato mais profundo com o seu ser, com as suas potencialidades e limitações, encarar a sua verdade e o desafio constante de auto-superar-se. Só assim ele vai poder estar presente de forma integral no palco, ou seja, não apenas fisicamente, mas fundindo corpo e mente, numa relação de correspondência interna e externa, que vai possibilitar-lhe uma ação real, consciente, voluntária, precisa e orgânica. Uma ação acreditável, mas não realista. Uma ação consciente, justificada e funcional que vem de impulsos interiores, por isso não mecânica, não estática. Uma ação dinâmica, em vida, sempre em ebulição. Aqui se encontra a dramaturgia do ator, o seu estado pré - expressivo, que vai possibilitá-lo produzir ações no palco, vai colocá-lo em condições de saber agir em cena, mover-se, sentindo o movimento, com uma consciência íntima desse movimento, um duplo organismo - físico e afetivo - um atleta do coração, como diz Artaud, nessa dialética do processo artificial e processo orgânico. Para que esse ator possa trabalhar sobre si mesmo (dimensão vital- organicidade) é necessário que ele tenha um quadro estruturado, uma partitura, um chão, uma técnica. Caso contrário o processo do ator corre o sério risco de se transformar em uma "sopa emotiva", como diz Grotowski. E é assim que Artaud, ao observar o Teatro de Bali, deixa claro essa questão, quando diz que os atores-bailarinos balineses entram em transe através de métodos calculados. Ao observar as grandes tradições espirituais, milenares, podemos perceber que as mesmas sempre tiveram necessidade de estruturas, de formas, isto é, todas essas tradições se manifestam dentro de um ritual preciso e rigoroso. Só assim é possível a representação visível do invisível, em que o ator conduz coerentemente gesto e pensamento, corpo e espírito, compondo a arte de tecer as ações em cena, ou seja, a dramaturgia do ator que acontece em dois níveis: pré - expressivo e expressivo. É esse nível pré - expressivo que fundamenta a minha pesquisa junto ao Grupo Bayu, ou seja, a construção da presença cênica do ator - uma educação permanente, anterior à apresentação, aquilo que não se vê em cena (como o alicerce de um prédio), mas que constrói o "bios cênico" do ator, como diz Eugênio Barba. Um trabalho que pressupõe consciência e vontade, em que será possível conciliar fluxo de vida e forma, espontaneidade e disciplina, pois não adianta uma composição bem feita, mas vazia, nem uma improvisação calorosa, mas sem forma. É no Oriente que novamente vamos encontrar esse equilíbrio, um teatro que é capaz de reacender em nós a chama da vida e que tem por trás um corpo técnico rigoroso. Por isso Artaud ficou tão impressionado com o Teatro de Bali e viu no mesmo a expressão concreta do teatro que ele buscava levar ao palco. Uma cultura ligada à vida. Mas qual vida? A vida colhida na sua dimensão mais profunda, a sua existência, a sua realidade corpórea e não a imitação da aparência da vida de todos os dias, da superficialidade do cotidiano, que nada acrescenta ao nosso ser. Como diz Peter Brook: "no palco, indivíduos que oferecem suas verdades mais íntimas para outros indivíduos na platéia lotada, partilhando com eles uma experiência coletiva" (...) "a intensidade, a honestidade e a precisão de seu trabalho deixam como legado um desafio. Não por algumas semanas, não por uma vez na vida, mas diariamente". E faço minhas, as palavras de Adolphe Appia: "e, onde quer que nos encontremos, onde quer que desejemos encontrar -nos, iluminemos o espaço com aqueles que lá se encontrem; a chama despertará clarões desconhecidos, projetará sombras reveladoras... e preparemos, assim, o Espaço vivo para os nossos seres vivos". Aguardem os próximos artigos: "Jersy Grotowski e o ator-performer", "Eugênio Barba: antropologia teatral", "Peter Brook e o teatro sagrado", "Tadeusz Kantor: o happening e sua poética cênica". |
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