A Formação do Ator na Cena Contemporânea
Teatro Contemporâneo

A Formação do Ator na Cena Contemporânea

Teatro  Contemporâneo |  A Formação do Ator na Cena Contemporânea

Texto: Cristina Tolentino
cristolenttino@gmail.com

 

Novas interpretações, novas visões

leonardo da vinci

No final do séc. XIX, início do séc. XX, certezas seculares vacilam: todos os dogmas são colocados em questão nas artes, nas ciências, nas sociedades, nas religiões.

Enquanto na idade média tudo era contemplado do ponto de vista de Deus, no renascimento esta concepção do mundo se inverte completamente: uma sociedade mercantil, onde o homem passa a valer mais por suas virtudes pessoais de audácia, cálculo e eficácia na ação, do que por seu lugar numa hierarquia de direito divino.

Nesta sociedade, o indivíduo passa a ser o centro do espaço e da perspectiva. Todas as coisas são ordenadas a partir do olho do indivíduo, que se considera senhor e dono da natureza por suas iniciativas e seus empreendimentos.

Uma atitude ativa e não mais religiosa. O comércio, a indústria, o lucro, vão trazer a convicção de que tudo deve ser mensurável e medido, situado e definido não em função de seu significado divino, mas de seu significado para a ação do homem. Essa visão passa a ser considerada como uma realidade imutável, necessária, natural.

A natureza passa a ser considerada como uma máquina que o “senhor dos engenhos”, o engenheiro faz funcionar. Esta concepção foi generalizada por Descartes – “Penso, logo existo” e os materialistas do séc. XVIII – uma concepção que separa o pensamento da existência, o corpo da mente.

É o senhor dos engenhos que vê o mundo a partir de um só olho, imóvel.
No início do séc. XX, esse homem vai se tornando um apêndice de carne numa maquinaria de aço, que o manipula de fora e o aliena cada vez mais. É a mecanização do trabalho e da vida.

Assim, as diversas artes ( pintura, poesia, música, teatro, dança ) vão buscar uma nova linguagem para expressar as necessidades e sentimentos do final do séc. XIX e início do séc. XX, colocando em questão postulados estéticos, principalmente contra a arte clássica e suas deturpações acadêmicas.

É a grande inversão que não mais considera a arte como a interpretação de um mundo dado e constituído, mas como a projeção de um mundo possível, não mais como um naturalismo preocupado em copiar a cotidianidade da vida.

Revelar o possível é a missão das artes, fazendo-o surgir e se desenvolver para que participe da criação de uma vida maior e mais rica.
Todos os setores tradicionais da vida viram-se abalados no início do século.

A física moderna ( através de Eisntein ) vem nos mostrar a relatividade do espaço e do tempo, retornando às suas origens, ao período inicial da filosofia grega – séc. VI a. C. uma cultura onde a ciência, a filosofia e a religião não se encontravam separadas.

Na Grécia, os sábios da escola de Tales de Mileto não se preocupavam com essas distinções. Seus objetivos giravam em torno da descoberta da natureza essencial ou da constituição real das coisas, a que denominavam de physis. O termo física deriva dessa palavra grega “physis” e significa a tentativa de ver a natureza essencial das coisas.

Os adeptos desta escola eram chamados hilozoístas – “aqueles que pensam que a matéria é viva”. Esses sábios não viam distinção entre o animado e o inanimado, entre o espírito e a matéria. Consideravam todas as formas de existência como manifestação da “physis”, dotadas de vida e espiritualidade.

Tales de Mileto declarava que todas as coisas estavam cheias de deuses e Anaximandro encarava o universo como uma espécie de organismo mantido pelo “pneuma”, a respiração cósmica, à semelhança do corpo humano mantido pelo ar.

Heráclito de Éfeso acreditava num mundo em perpétua mudança, um eterno “vir-a-ser”. Ele ensinava que todas as transformações no mundo derivam da interação dinâmica dos opostos. A essa unidade, que contém e transcende todas as forças opostas, ele denominava “logos”.

O FOGO era seu princípio universal – um símbolo para o contínuo fluxo e a permanente mudança em todas as coisas : o dia vira noite; a noite vira dia; o quente esfria; o frio esquenta; o líquido vira sólido; o sólido vira líquido…

A divisão desta unidade deu-se a partir da escola eleatica que pressupunha um Princípio Divino posicionando acima de todos os deuses e de todos os homens. Esse princípio foi inicialmente identificado como a unidade do universo; depois passou a ser encarado como um Deus Pessoal e inteligente, situado acima do mundo e dirigindo este mundo.

É daí que se originou uma tendência do pensamento, responsável mais tarde, pela separação entre espírito e matéria, gerando esse dualismo que se tornou a marca da filosofia ocidental.

O passo decisivo nessa direção foi dado por Parmênides de Ekeia. Em oposição a Heráclito, Parmênides denominava seu princípio básico como o SER afirmando esse SER como único e imutável.

Surge o conceito do átomo, como a menor unidade indivisível da matéria. Os atomistas gregos – como Demócrito – estabelecem uma linha demarcatória entre espírito e matéria, sendo a matéria formada de inúmeros “blocos básicos de construção”. Esses blocos não passavam de partículas passivas e intrinsecamente mortas, movendo-se no vácuo.

Os filósofos voltam sua atenção, neste momento, para o mundo espiritual, pondo de lado o material, passando a concentrar-se na alma humana e nos problemas da ética. Esse conhecimento científico da antigüidade vai ser sistematizado por Aristóteles, tornando-se a base da visão ocidental do universo durante dois mil anos.

Aristóteles acreditava que as questões concernentes à alma humana e à contemplação da perfeição de Deus, eram muito mais valiosas do que as investigações em torno do mundo material.

Essa imutabilidade do modelo aristotélico do universo, por tanto tempo, tem a ver com essa ausência de interesse no mundo material, reforçada pela Igreja Cristã, que apoiou as doutrinas aristotélicas durante toda a Idade Média.

A partir do Renascimento, há um novo interesse em torno da natureza, que passa a ser estudada a partir de um espírito científico e de um crescente interesse pela matemática. A formulação das teorias científicas, que vai tomar por base o experimento, é expressa em linguagem matemática.

Nasce a ciência moderna, tendo por base o pensamento filosófico, o qual deu origem a uma formulação do dualismo espírito-matéria. Esta formulação vem à tona no séc. XVII, através de Descartes – “Penso, logo existo”.

A mente é separada do corpo, recebendo a inútil tarefa de controlá-lo. O homem é dividido num grande número de compartimentos isolados, de acordo com as atividades que exerce – seu talento, seus sentimentos, suas crenças, etc.

Essa fragmentação interna vai espelhar nossa visão do mundo “exterior”, sendo encarado como um mundo constituído de uma imensa quantidade de objetos e fatos isolados.

A divisão “cartesiana”, vai permitir aos cientistas tratar a matéria como algo morto. O mundo material é uma quantidade de objetos reunidos numa máquina de grandes proporções.

É a visão mecanicista do mundo, que vai ser sustentada por Isaac Newton na elaboração da sua Mecânica, tornando-a alicerce da Física Clássica. O modelo mecanicista newtoniano do universo, dominou todo o pensamento científico do séc. XVII até o fim do séc. XIX.

Essa mecânica newtoniana foi por muito tempo considerada a teoria final para a descrição dos fenômenos naturais, até o momento em que os fenômenos elétricos e magnéticos – que não dispunham de espaço na teoria de Newton – foram descobertos.

A descoberta desses fenômenos demonstrou que o modelo mecanicista era incompleto, pois podia ser aplicado unicamente a um grupo limitado de fenômenos – o movimento dos corpos sólidos no espaço, causado por sua atração mútua, ou seja, pela força da gravidade.

A grande máquina cósmica era vista como algo inteiramente causal e determinado. Tudo o que acontecia possuía uma causa definida e gerava um efeito definido.
O átomo, na concepção newtoniana era uma esfera compacta em que nada mais acontece.

A Formação do Ator na Cena Contemporânea - parte 2

No início do séc. XX, a mecânica de Newton deixa de ser a base de toda a física. A teoria da relatividade e da física atômica, vão esfacelar os principais conceitos da visão newtoniana do mundo: a noção de tempo e espaço absolutos, a natureza estritamente causal dos fenômenos físicos e o ideal de uma descrição objetiva da natureza.

De acordo com a teoria da relatividade, desenvolvida por Einstein, o espaço não é tridimensional ( largura, profundidade, espessura ) e o tempo não constitui uma entidade isolada. Ambos acham-se intimamente vinculados, formando um “continuum quadridimensional”, o “espaço-tempo”. Nunca podemos falar do espaço sem falar do tempo e vice-versa.

Observadores diferentes ordenarão diferentemente os eventos observados, ou seja, não existe só um anglo de visão finito, acabado.
Toda a estrutura do espaço-tempo depende da distribuição da matéria no universo, ao contrário da visão newtoniana, que acreditava que o mundo podia ser descrito objetivamente, sem sequer mencionar o observador.

Com isso, a concepção de um universo finito, tanto no tempo quanto no espaço, tanto no sentido de grandeza quanto no da pequenez, passa a ser questionada e recusada.
Não existe átomo indivisível, uma partícula última que estabelece um limite para a subdivisão da matéria e para o conhecimento.

Estamos destinados a um movimento infindável do pensamento e ação. A realidade não está dada e constituída, está sempre nascendo e crescendo.

Nas artes, o movimento de vanguarda cubista, deixa de recorrer às essas convenções fechadas, em que o centro único de referência determinava que o mundo fosse visto por um só olho, imóvel.

Renunciando a este ponto de vista ciclope, os cubistas buscam sugerir por perspectivas múltiplas, um mundo visto por um ou vários homens que se movimentam, modificando assim, os ângulos da visão. (leia na seção de artes plásticas o texto sobre Cubismo).

Olhar é um ato e o pintor nos faz tomar consciência de que o mundo real é um mundo construído, de que outros mundos são, portanto, possíveis. Passa-se de uma visão fechada, finita, fragmentada, para uma visão aberta, infinita, no campo das probabilidades.

Na ciência, Einstein vem nos colocar que a partícula é um ponto circular de um campo ondulatório, no qual se concentra ou a partir do qual irradia a energia, deslocando-se e desaparecendo, para renascer.

A concepção do átomo, como uma esfera compacta, finita (visão newtoniana), cai por terra. Esta imagem nova do indivíduo – ritmo e movimento – que não é um ser constituído, pronto, acabado, um átomo fechado em si mesmo, mas um núcleo denso de uma energia, onde se enlaçam forças e fibras – o tornam participante de um todo.

É a retomada da concepção do mundo de Heráclito : o mundo é um fogo eternamente vivo que se acende e se apaga na mesma medida.

Na filosofia, Nietzsche vai tratar essa questão como a “vontade de potência”, ou seja, o vir-a-ser que não conhece nenhum cansaço, nenhum fastio – que não tem um ponto final. Na psicologia, Freud e a psicanálise vem nos trazer esse mundo do inconsciente, esse mundo dos sonhos para além do mundo cotidiano, externo e visível.

Todo esse contexto vem abalar as estruturas rígidas de visão do mundo e do homem. O artista, como um ser de visão, vai perscrutar e perceber isso de uma maneira especial e a partir da sua sensibilidade, indagações, inquietação, vai tecer com a sua arte, esse novo olhar inaugural do mundo e do homem.

No teatro, um outro ponto, que vai enriquecer e modificar a arte do ator do século XX, é a ampliação dos horizontes históricos e a abertura geográfica.
Em 1912, Edward Gordon Craig (ator, cenógrafo e pesquisador da arte do ator), vai a Moscou trabalhar com Stanislawski.

Em 1931, na Exposição Colonial em Paris, o Teatro de Bali (da Indonésia), revela-se para Antonin Artaud( ator e diretor, que trouxe uma das mais importantes contribuições para o teatro no séc. XX), como a concretização das suas idéias a respeito daquilo que o teatro deveria ser. A Ópera de Pequim excursiona pela Europa. Jersy Grotowski (grande pesquisador da arte do ator em Opole, Cracóvia) , estuda in loco, a arte e a técnica dos atores chineses.

Na dança, Isadora Duncan rompe com as convenções e os códigos que há séculos vinha sufocando esta arte.

Ela vai buscar nos fenômenos naturais, nas ondas, no vento, nas nuvens, modelos de movimento e disciplinas rítmicas.

Ela dizia: “a dança não é, como se tende a creditar, um conjunto de passos mais ou menos arbitrários que são o resultado de combinações mecânicas e que, embora possam ser úteis como exercícios técnicos, não poderiam ter a pretensão de constituírem uma arte: são meios e não fim”.

Ela rejeita a pantomina, na medida em que esta não é mais do que um substituto da palavra, reproduzindo o real em vez de criar.

“Tive três grandes mestres – Bethovem, que criou a dança em termos poderosos ; Wagner em formas esculturais; Nietzsche, que a criou em espírito. Nietzsche foi o primeiro filósofo da dança”, dizia Isadora.

E é em Zaratustra de Nietzsche, que ela encontra aquilo que resume sua concepção de vida e de dança: “Há sempre um pouco de loucura no amor, mas há sempre um pouco de razão na loucura.

E para mim também, para mim que estou destinado à vida, às borboletas e às bolhas de sabão, e tudo o que a elas se assemelham entre os homens, parece-me ser quem melhor conhece a felicidade.

Quando vê esvoaçar essas almas pequenas, leves e maleáveis, graciosas e brincalhonas, Zaratustra tem vontade de chorar e de cantar.
Eu só poderia acreditar em um deus que soubesse dançar.
Aprendi a andar, desde então, deixo-me correr.
Aprendi a voar, desde então não preciso mais que me empurrem para mudar de lugar.
Agora sou leve, agora eu vôo, agora um deus dança em mim.
Assim falava Zaratustra.”

É a partir de todo este contexto, que vamos pesquisar, estudar, aprofundar e acompanhar a trajetória da arte do ator no séc XX, que retoma seu lugar e sua importância no espaço e no tempo da representação, enquanto um ser humano inteiro, disponível, presente, ativo, dinâmico, em movimento, em ação, em constante vir-a-ser, criando novas maneiras de perceber o mundo e pensar a experiência humana – experiência de recuperação material do ato de existir.

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